O espelho

Às 5h aproximadamente a claridade inunda meu quarto com a luz da manhã. Corpo e mente despertos, penso no filme da véspera e o associo ao sonho de poucos dias antes com amigos escritores caminhando em busca sabe-se lá do quê, um daqueles sonhos enigmáticos que nos fazem nos perguntarmos sobre seu sentido e logo são esquecidos, deixados pra lá.

Penso: início de ano é tempo de traçar planos e projetos. De arrumar gavetas a terminar aquele romance que há tempos vem se apagando no mofo dos papéis guardados no fundo do armário, mais sedutora é a ideia de planejar uma daquelas viagens tão sonhadas desde os tempos de escola, quando as aulas de história nos levavam nos longes do mundo antigo. Qual o quê?! Acordei sentindo uma saudade danada! Lembrança doída de sei lá quantas coisas deixadas pra trás no meio do caminho... Acho que foi aquele meu olhar na fotografia me olhando de soslaio, entre indagador e pensativo, trazendo de tempos idos o olhar amoroso de meu pai. Ouvi, desde a infância e ao longo de toda a vida, a categórica afirmação: essa menina se parece demais com o pai. É igualzinha a ele! Cônscia da ironia que escorria dessas palavras insistentes, que de tempos em tempos se repetiam, sabia que elas diziam mais, retratavam não apenas a evidência da semelhança aparente entre pai e filha, mas também o que lhe subjaz: dizia tudo que aquela menina não era, embora tanto se lhe ensinassem boas lições e prendas. Ainda assim aquela garota calada e tímida sentia orgulho de se descobrir, dia após dia, parecida com seu pai. Ah! Como esse olhar na fotografia me trouxe o próprio olhar de meu pai.

Que interesse despertarão no leitor essas banalidades que tais?! Saber talvez das fantasias de hoje nascidas outrora do encantamento encontrado nos livros lidos com o pai e em viagens sem fim a terras distantes sempre em companhia da lua nas madrugadas feitas de silêncio? Que saberá o leitor da magia de ver brotar da terra úmida e fertilizada do estreito quintal - onde, pelas mãos da criança, foram plantadas três sementes de cacau - a árvore com seus frutos dourados pelo sol e a roseira que dava rosas brancas em cachos, como nunca mais foram vistas, cultivadas pelas mãos cuidadosas e pelo olhar de minha mãe? Com ela descobri devagarinho, feita de silêncios, a harmonia das coisas boas e simples, aprendi a exigência das coisas bem-feitas, a delicadeza dos bordados. Com minha mãe conheci o que é exílio e o gosto indefinível da saudade.

Que interesse pode haver numa crônica que, ao tentar falar de planos, mistura assim presente e passado, realidade e ficção? Escrever, fantasiar, lembrar, tudo gira em torno do vazio. É em torno do vazio que se borda a existência. Percebo agora novamente a luz que invade meu quarto para além das cortinas, e que me traz de volta, acordada, ao sonho e ao drama a que assisti ontem mesmo no cinema: uma história familiar que se passa numa pacata cidadezinha nos Alpes franceses se transforma com uma inesperada morte. A investigação da causa dessa misteriosa morte desdobra-se num extraordinário julgamento, cujo duelo entre acusação e defesa surpreende. O roteiro ágil e rico em diálogos traz uma reflexão contundente sobre a ambiguidade da vida e das emoções, e desnuda a complexidade das relações humanas, instigando-nos a perguntar o que seja, afinal, justiça. Em tempo: a direção e o roteiro, primorosos, são de Justine Triet. Que sensibilidade para abordar as sutilezas pertinentes à subjetividade e ao real da existência humana! Com que argúcia a arte espelha a dramática experiência do viver! Em tempo ainda: os personagens centrais da história, um homem e uma mulher, têm a peculiaridade de serem ambos escritores e de viverem, cada um deles, à sua maneira, uma forma muito própria de se relacionarem com a escrita. “A anatomia de uma queda”: um filme que não se pode deixar de ver. Faz pensar.

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