Meu presente de Natal

Na contramão do burburinho dessa época do ano, em que a celebração do Natal se associa às festividades, à agitação e à efêmera e ilusória euforia do consumo, tomando conta da cidade em desvario nessas ensolaradas tardes de dezembro, encontro no silêncio e na solidão da leitura sossego e a quietude necessária para escutar as vozes que me acalmam, que tragam algum alívio para o desalento de constatar dia a dia em nosso país o que à nossa volta se degrada. Por ora deixo de lado os livros que me fazem boa companhia, folheio outros, refaço a lista daqueles que estão à espera há algum tempo, ofereço-lhes minha melhor carícia, me enamoro da belíssima epígrafe de Drummond utilizada por Ruy Perini em Recontando Machado, da editora Cândida - que passou a integrar a lista -, e vou direto para Morte em V., também publicado pela Cândida, recém-saído do forno, da inconfundível lavra de nosso maior romancista, Reinaldo Santos Neves.

Morte em V. é romance pra gente grande. Difícil de ler? Não; ao contrário. Começa-se a ler e não se quer mais parar. Para início de conversa, o escritor superou-se a si próprio em sua capacidade de transformar a vida em literatura, recriando-a esteticamente, com leveza e imaginação, tal como preconizara um dia, na estreita linha dos que encontram na arte - e particularmente na literatura - a única forma possível de vida, digna de assim ser chamada, a despeito do que isso lhes custa, à maneira de Mallarmé e Gide. Quando menos se poderia esperar, ainda mais o leitor se surpreende. Num árduo e raro trabalho de ourivesaria, com o ouro em pó das palavras, Reinaldo Santos Neves se supera, repito, em sua arte de contar histórias.  Sim, contar histórias, assim mesmo, no plural, porque são várias numa única, ouso dizer, épica e comovente história.

O título por si já instiga. O que ele sugere? Não se sabe. Só mesmo lendo o romance, deixando-se se perder no labirinto de lembranças, ideias, referências literárias, de histórias vividas ou fecundadas no solo vasto e fértil da floresta da linguagem e da imaginação. Como então falar da vida sem seu equivalente e inexorável par? No sugestivo título homenagem e ambivalência antecipam a potência criadora do romance. A trajetória do protagonista, duplo de escritor e leitor, cuja experiência é narrada com sensibilidade por uma voz feminina afirmativa, porém bastante discreta, traz passagens antológicas, como a da confissão de seu ateísmo convicto ou de seu “catolicismo sentimental” numa apologia estética bem fundamentada, que deságua na bela e delicada cena da comunhão, lembrança de infância reconstituída pelo olhar adulto, com a humanidade dos sulcos deixados pelo tempo. Ora com revelações poéticas, ora trazendo reflexões sobre a natureza e a função da literatura e do desejo ao mesclar vida e poesia, ganha vigor e encanto a voz do personagem escritor, que, com suas maravilhosas frases “escritas em ziguezague”, confessa seu amor e sua preferência literária pela prosa de ficção.

A morte, como a vida, tema central no enredo, reveste-se da linguagem ficcional e poética da melhor linhagem na prosa literária brasileira, distinguindo-a, com sua força criativa, no cenário da literatura mundial contemporânea. Lembro-me, de passagem e não por acaso, do romance A morte do pai (Companhia das Letras, 2013), do norueguês Karl Ove Knausgard. O autor inicia a narrativa da sua vida falando da morte num romance autobiográfico que se tornou best-seller na Noruega e fenômeno literário internacional. Coincidência?! A despeito de ambos tratarem da finitude humana, o que neles se lê é antes de tudo de “uma vitalidade arrebatadora”. Vale ressaltar que a literatura de Reinaldo Santos Neves seguramente transmuta-se num vigoroso trabalho de crítica literária, cuja envergadura equivale à de nomes como os de Antônio Cândido, José Américo Pessanha e Alfredo Bosi, por exemplo, ao analisar o caráter singular e estético das obras de grandes autores de diferentes estilos e épocas. Não bastasse a história da vida de um escritor que muito tem a contar, há nesse romance épico uma autêntica história da leitura, costurada fio a fio, com devoção, na singularidade da história de um leitor, que fez da própria vida, como poucos, uma obra literária. Sem dúvida, não se passasse essa história na província, seria seu autor reconhecidamente merecedor do Prêmio Nobel de Literatura.

Morte em V., de Reinaldo Santos Neves, é, mais que tudo, testemunho do amor literário que guiou o escritor, à luz da intuição, do saber de que fala Roland Barthes, em seu gigantesco embate com os grandes escritores que forjaram sua história de vida e sua literatura feita de ficção e memória. É com esse amor literário que o romancista empreende, uma vez mais, seu distinto percurso com sua própria força e ânsia da beleza.

Não se iluda, leitor, este é um livro para ser lido à guisa das fantasias da infância e da juventude, que nos acompanham pela vida inteira, ainda que não o saibamos. Um livro para ser lido, paradoxalmente, com liberdade e reverência para descobrir os mais caros segredos sob o véu de trapaças e engenho da memória: catando pedrinhas pelo caminho na densa paisagem de signos e afetos com os quais possamos, quem sabe, interpretar os mistérios, as lacunas, a errância e os vislumbres de nossa própria memória.

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