Por que ler os clássicos? Com essa pergunta Italo Calvino desenvolve um breve e original ensaio acerca do prazer da leitura e de seu significado em nossas vidas. Trata-se de uma série de reflexões sobre a importância das leituras ditas “de formação” com as quais o leitor plasma seu caráter, conhece-se a si próprio e o mundo que o rodeia, e exercita seu pensamento, seu gosto estético, suas escolhas. O escritor principia o ensaio com algumas proposições, que se tornaram máximas entre seus próprios leitores, que, como eu, se deleitam com o que me parece ser uma bela interpretação de históricas práticas culturais, que, lamentavelmente, parecem estar caindo em declínio.
Aquela mesma pergunta dá título ao livro traduzido pelo capixaba Nilson Moulin e publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 1993. Este livro reúne boa parte de seus ensaios e artigos, por meio dos quais conhecemos a fonte de sua formação intelectual. Nessa obra identificamos “seus” clássicos. Como consta na apresentação de Esther Calvino, ali figuram os escritores, os poetas, os cientistas que mais contaram para Calvino em diversos períodos de sua vida. Com essa galeria de escritores e pensadores, Italo Calvino revela-se, antes de tudo, ele próprio um grande, um excepcional leitor.
Dando realce à potência criadora da leitura, intensificando as possibilidades interpretativas que se oferecem na relação entre o livro e o leitor, abrindo-se a sugestões poéticas, o ensaísta valoriza a experiência mesma de ler e de reler um livro como ato de descoberta e criação. Entre leituras e releituras, meus olhos percorrem os caracteres negros sobre a alva página em busca de seu pensamento claro, que desafia minha imaginação e ânsia de conhecer. Convido você a refazer comigo um rápido percurso, relembrando, destacando aqui e ali algumas filigranas de seu jeito de pensar o homem e a cultura:
- “Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória...”;
- “Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.”;
- “Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.”;
- “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”;
- “Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando
são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos”;
- “Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à
semelhança dos antigos talismãs”.
Segundo Italo Calvino, os clássicos não devem ser lidos por dever ou por respeito; ao contrário, para ele, estabelece-se na leitura de um clássico uma relação pessoal com quem o lê. A leitura de um clássico de fato só pode ser por amor. No romance Se um viajante numa noite de inverno, também da Companhia das Letras (1999), também traduzido por Nilson Moulin, o escritor diz pela voz de um de seus personagens: “Enquanto eu souber que no mundo existe alguém que faça jogos de prestidigitação simplesmente por amor ao jogo, enquanto até souber que há uma mulher que lê por amor à leitura, posso estar seguro de que o mundo continua...”.
Italo Calvino, um dos grandes nomes da literatura italiana do século XX, notabilizou-se por sua vasta obra, em que transita, com diferentes estilos, como ele mesmo diz, entre ensaios e ficção. Escreveu em diferentes gêneros: romances, contos, literatura fantástica, ensaios, textos memorialísticos, sempre aliando ciência e arte, pensamento abstrato e criação estética, proporcionando ao leitor com seu trabalho de crítica e criação a travessia do saber de um “maître a penser”. Italo Calvino revela-se a si próprio um pensador. A propósito, retomo a pergunta: por que ler os clássicos? Ou, em outras palavras, de um outro jeito: por que o meu desejo de reler Italo Calvino? Por ser ele próprio um clássico, cujo pensamento alia tradição e modernidade, eu poderia justificar. Tendo ele nascido em 15 de outubro de 1923, eu acrescentaria: para celebrar em 2023 seu centenário. Com renovada admiração, releio Italo Calvino, sobretudo, para prestar-lhe uma justa e singela homenagem.