Principia a primavera. Os pés de ipê rosa, tão lindos, rodeados por seu tapete de pequenos buquês esparramados no chão bem em frente à minha janela, já terminaram sua floração. Que pena! Tão linda e tão efêmera. As estações do ano talvez estejam cada vez mais indistintas. Os eventos naturais, aqui e pelo mundo afora, têm mostrado, para quem quiser ver, que o que vem sendo advertido pelos ambientalistas sobre a destruição e o futuro do planeta, há pelo menos quarenta anos, já está aceleradamente em curso. O futuro já está aí. Aliás, presente e futuro se fundem. Inundações, ciclones, furacões, secas prolongadas, terremotos e outras tantas manifestações da natureza com históricas consequências sociais, que agravam as desigualdades e os processos migratórios pelo mundo, são acontecimentos do presente resultantes do aquecimento global. Indago-me sobre o desafio da necessidade de água para a sobrevivência humana e sobre as novas formas de convivência nesse futuro que já chegou.
Enquanto não vejo resposta e a nova floração não vem, enquanto aguardo a musa, procuro por aqueles que me asseguram boa companhia: os livros. A cada fim de tarde retomo a leitura interrompida a muito custo na véspera. Entre a entrega, no caso, ao romance e o levantar de olhos para refletir e lembrar, procuro naquelas já familiares prateleiras da estante As pequenas virtudes, da escritora italiana Natalia Ginsburg. Esta é uma nova busca em vão, que me angustia. Sei que esse livro foi emprestado para pessoa muito amada e próxima, um familiar talvez, a quem eu desejava a felicidade de ler livro tão fecundo e bonito, em que a beleza da vida consiste no acontecimento, no kairós, como nos ensinam os gregos. Desisto momentaneamente e passo em revista quase todas as prateleiras em busca das Confissões de Santo Agostinho - presente de uma querida amiga -, que sempre esteve ali, próximo à luz do abajur. É nele que reencontro belas reflexões sobre o tempo e sua relação com a criação, que me apaziguam o espírito. Inevitavelmente me recordo da pequena biblioteca pessoal formada por bons dicionários e por importantes livros de formação e pesquisa à época, deixada, por esquecimento e distração imperdoável, na pequena sala compartilhada na UFES. Vêm-me à memória os livros emprestados, esquecidos, perdidos. Todo livro tem sua história, assim como quem lê tem sua própria história como leitor, sua história de leituras. Haverá sempre entre o livro e o leitor uma história única, particular, reconstruída a cada releitura. E nisso se forma uma memória. Por isso aprendi definitivamente que livro não se empresta; livro se dá.
Deixo o romance para depois e tomo às mãos uma das sempre belas narrativas de Walter Benjamin, em que o filósofo poeta compartilha a história da formação de sua própria biblioteca, detalhando a paixão contida na arte de colecionar, que ele associa ao valor das recordações mais que à coleção em si. Admitindo a tensão entre ordem e desordem na vida do colecionador de livros, ele nos pergunta: “Vocês já ouviram falar de pessoas que adoeceram com a perda de seus livros?...”. Histórias e mais histórias se sucedem na reconstituição do seu envolvente trabalho de desempacotar sua biblioteca, e nisso consiste o tesouro de seu pensamento: lembrar e narrar. Pensar por imagens, poeticamente. Com arte. Quem sabe o acaso e o destino nos tragam novamente a conversa sobre suas - ou nossas - memoráveis lembranças?
Por ora, de lembrança em lembrança, trago à memória o buquê de urtigas que recebi certa vez em forma de versos. Era primavera e na primavera tudo floresce. Vou esperar a próxima primavera para ver os ipês florirem.
24 de setembro de 2023.