Uma prosaica ida ao cinema

Ir ao cinema ainda é um dos grandes e cada vez mais escassos prazeres da vida. A história do cinema nos proporcionou uma experiência até então impossível de ser imaginada, alinhavando com arte e movimento as nossas próprias histórias de vida. Bem disse Ivan Borgo em suas memoráveis crônicas sobre quão fascinante é essa experiência de assistir aos filmes que marcam época e ficam para sempre na lembrança. Dia desses, mais precisamente numa noite de sábado, o Cine Jardins, raro espaço de qualidade preservado à cinefilia graças à persistente dedicação do Juninho Talmon, foi palco de uma cena inquietante durante a apresentação do excelente Oppenheimer, cuja relevância merece comentário à parte. Sala lotada, algo incomum, plateia munida dos cada vez maiores sacos de pipoca, ao filme precede, como de costume, a apresentação da animação que alerta, com humor e gentileza, a digníssima plateia sobre a importância de observar algumas regras básicas de consideração e convívio. Eis que a atenção ao filme é roubada por uma tosse intensa, intermitente e comprometedora, vinda do lado. O que parecia ser uma crise momentânea durou ininterruptamente o filme inteiro. Uma senhora sentada ao lado da pessoa em questão se levanta e discretamente procura alguma poltrona vaga. Em tempos de pós-pandemia, influenza e outras viroses continuam a preocupar. Não encontrando lugar, senta-se a um canto na escadinha, ali mesmo no chão, sem ter onde se recostar durante três horas. O interesse pelo filme certamente prevaleceu ao desconforto e ao medo.

O que isso tem a ver com cinema, arte, literatura, perguntará com razão o leitor.

Lembro, dentre tantas outras lições que aprendi com um admirável professor de filosofia, um caro amigo, a importância do ethos que em nós habita. Nos tempos que correm, faz-se cada vez mais necessário refletir sobre essa e outras questões. No rastro da ciência e das conquistas do pensamento, a modernidade trouxe consigo a percepção da infinitude do universo e a concepção do sujeito moderno que habita o cosmos. Se Copérnico alinha a Terra entre os planetas, a liberdade, com Spinoza, funda uma compreensão da vida e do novo homem a partir não apenas da razão, mas também e principalmente de uma ética em que os afetos importam. Identificam-se novas formações subjetivas segundo as leis kantianas e as descobertas de Freud. O mal-estar na civilização, ensaio de Freud publicado em 1930, nos ajuda a pensar a servidão e as conquistas humanas e a necessidade da Lei para a organização psíquica e a regulação da vida social, essenciais ao processo civilizatório.

Parece que esse nosso mundo em transe, vivido no presente - tal como a imagem criada por Glauber Rocha -, provoca ora perplexidade ora entusiasmo, às vezes indignação. Contemporaneamente, segundo a compreensão de sociedade líquida de Zygmunt Bauman para seu conceito de cultura, os paradoxos existenciais da humanidade constituem-se como propriedade universal de todas as formas humanas de vida. Sob o estigma desse mal-estar, próprio desses tempos líquidos, novo sujeito assoma À cidade perversa, que, segundo seu autor Dany-Robert Dufour (Civilização Brasileira: 2013), parece erigir “o excesso como regra de vida”.

Uma vez mais parece oportuno e essencial ler ou reler Proust e Machado de Assis, que, com realismo, elegância de estilo e sua fina ironia, aguçam, por meio de sua crítica dos costumes, nossa percepção do mundo em que vivemos.


Agosto de 2023.

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