Rememoração

Tendo vivido por longo tempo a inconstância do sentimento de exílio, busco o passado para com ele ir costurando as lembranças que me façam ver e ouvir, compreender o presente. Preciso lembrar para descobrir o que, quem sabe, poderá vir a ser. Não há perspectiva de futuro, sem que ao passado se una cada novo instante, cada acontecimento.

Séculos de história nos separam, mas também nos unem a Portugal, disto todos nós sabemos. Aprendemos bem ou mal na escola. Revisito Eça, Pessoa e alguns contemporâneos tentando encontrar pedacinhos de uma entre milhares de histórias que possam me ajudar a descobrir retalhos da existência dos que me precederam, seja na emblemática Coimbra, seja em Trás-os-Montes e vales e recônditas montanhas, seja nas aldeias de xisto, cuja austera imagem medieval contrasta com as florezinhas que, vulgares e mimosas, colorem as balaustradas de suas janelas e fachadas, fazendo-me devanear quantas vidas diferentes, vidas tristes e baldias, poderia eu ter vivido ali. Aqui ou acolá, o fado e os olhos voltados para o mar instaram laços onde se guarda a saudade, estranha palavra essa nascida de um verso.

Palácios, castelos, museus, catedrais, tudo inspira lembrança e devaneio. Igrejas e capelas recontam, com arte e esplendor, as dores dos santos e, junto com as deles, também as dos homens, que, anonimamente, ali esculpiram e pintaram suas pobres vidas. Seus altares e retábulos, mais que oração, sugerem e imploram a imortalidade da demasiadamente humana história cristã. Imortalizam séculos, milênios de história, esculpidos, para não deixar que se apaguem o que nela há de nossa mísera e frágil condição humana. O artista e seu modelo se confundem, a tal ponto se veem na criação os vestígios do que fora a vida dos santos e a de seu criador. A arte tem dessas coisas. A contemplação traz de volta ao pensamento o mistério e a estranheza da vida, como se vê em Pirandello, cujos fantásticos personagens se debatem em busca de seu autor. No silêncio e pela rememoração é que se ouve e se vê. Ao percorrer dos claustros e mosteiros e conventos seus amplos corredores e pátios, com reverência, experimenta-se o prazer de imaginar a vida de preces ali vivida por monges e monjas, cuja contrição tanto ensejo lhes deu ao desejo de saber contido nos manuscritos que legaram à posteridade.

Os sentidos se embaralham na difusa lembrança de histórias lidas ou contadas nas noites silenciosas ou nas tardes amenas de um tempo que se esvai. E que ninguém vê. Mas esta frase me traz de volta o encontro inesperado e longo do meu olhar com os jacarandás floridos, muitos e circunspectos, e, por isso mesmo, exuberantes, com as trepadeiras em flor nas janelas e nos alpendres das tortuosas vielas, a lembrar que ali, onde fora um dia sombra e solidão, hoje é primavera.

Essa é a Lisboa mesma e diversa de minhas lembranças, cheia de vida e encanto, que a cada esquina me seduz com as vitrines de suas históricas livrarias e de seus doces conventuais, a mesma e diversa Lisboa do romance de Saramago. A História do Cerco de Lisboa mais me comove quanto mais me ilude sobre minha origem. Ao descrever a cidade, palco do embate entre muçulmanos e cristãos num reino em formação, leva-me o escritor, hoje, a morrer de amores pelas amoreiras, que, de tão lindas, dão nome à região ou bairro cheio de verde e de vida em que convivem os locais em sua rotina de frequentar a encantadora praça, conhecida como o Jardim das Amoreiras, em frente à qual uma bela capela foi construída no século XVII num dos imensos e precisos arcos do aqueduto das Águas Livres, este do século VII, relíquia do império romano que sobreviveu, íntegra, ao terremoto de 1755. Do outro lado da praça, o acolhedor Hotel das Amoreiras, com seu aconchego e seu charmoso estilo inglês, parece fazer parte da paisagem, a guardar, a cada fim do dia, o sono de seus hóspedes. Ali bem pertinho se encontra a casa - hoje transformada em fundação - em que viveu Fernando Pessoa.

Lisboa toda floresce. Praças e jardins resplandecem em cor e graça e luz. Os dias frios e ensolarados convidam a passear sem pressa pelas ruas escondidas, guardiãs de seus segredos, a subir e descer ladeiras, para tornar a subir mais e mais em busca dos miradouros, cada um deles a descortinar amplos e infindáveis ângulos de visão da cidade antiga construída entre sete colinas, sedutoramente, a se perder de vista. Com seus telhados que irradiam poesia à clara luz do sol e à margem das profundas águas do Tejo, Lisboa se exibe, exuberante, engenhosa e bela como o poema épico de Camões.

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