Volta pra casa
ou
Da felicidade de escrever

Na madrugada insone estive a pensar... A felicidade clandestina, de Clarice, que também é minha, vai se reeditando, desde a infância, vida afora, assim como medos e fantasmas. Guardados como segredos, eles se instalam, se reinventam a cada tropeço, a cada chuva fina que cai, a cada esquecimento. Viajar, pela estrada ou no tempo, tem também dessas coisas. Viagens carregam consigo sei lá quantos mistérios. Exigem muito mais que espírito de aventura e ânsia do ainda não conhecido; exigem respeito e abandono, entrega e volúpia, paciência e ardor. Dormir, entre um dia e outro, passa a ser supérfluo. É preciso escrever cada gesto, cada busca, cada queda. O encontro com o inusitado, com a cultura do outro, desperta e fertiliza novos afetos, que moldam nosso jeito de ver e sentir, nossa experiência para voar. É preciso manter afiada a memória das coisas, do pressentido universo de imagens e símbolos entre lacunas e lembranças, entre o olhar e o desejo. A máquina finge, apenas finge guardar o que se viu ou se sonhou um dia. Por isso escrever é uma imposição, uma obscura vontade de vencer a morte, de adiá-la ao menos. Clandestinamente, as palavras entremeiam-se, em toda a sua realidade fugidia e vária, da matéria do tempo e de nossas ficções. E nos indagam, já dizia nosso poeta inventor do cotidiano, ao reafirmar por elas seu amor. À exaustão, as palavras nos fustigam. Escancaram nossa pequenez e iluminam sabe-se lá o quê do invisível de nós mesmos e de tudo que já se foi capaz de se inventar um dia, em tempos imemoriais. Ou ontem. As palavras nos amparam. Ainda que precariamente, elas organizam o que faz sentido e o que não faz sentido e nos ajudam a viver. Então, dormir é só um detalhe. Que não tem importância alguma no percurso de uma viagem.

No entanto, até mesmo a felicidade, suposta felicidade, precisa de pausa. Só assim ela traz algum sentido de verdade. Para evitar o desvario, sigo editando as bobices de uma vida inteira. Quem sabe, no meio do cascalho, encontre algo que passei a vida a procurar, e que esteve sempre ali e eu nem sabia... Fora buscar longe o que houvera presumivelmente perdido. Felicidade pequenina, suposta felicidade essa construída ao longo do caminho, apenas entrevista em paisagens e memórias efêmeras que o olhar pudera vislumbrar no decorrer dos dias.

Ao viajar, há a premência em se perder nas vielas, nas estreitas e labirínticas ruas dos bairros marcados de história, na cidade antiga... Há que perder-se de si mesmo. Há que sucumbir, e depois reerguer-se, diante da beleza.

Então, escrever é só um exercício para desocupar gavetas. Pois não tem razão meu amigo, sábio poeta capixaba, que, contrariando o egípcio deus Toth, defensor da mágica relação entre escrita e memória, me confidenciou dia desses que, ao escrever, nos libertamos para esquecer? Se ele estiver certo - eu creio que sim - e, se prestar, farei com as lembranças e a espessura das palavras novas combinações algum dia. Senão, é só esquecer, feito amassar papel e jogar fora. Mas esperando sempre o dia amanhecer. E, quem sabe, recomeçar tudo outra vez.

Leia outros textos 

Volte ao índice das colunas