A despedida do fantasma

Fazia tempo que eu não pisava no centro histórico de Vitória. Naquela tarde, porém, me dispus a ver uma exposição de quadros de Atílio Colnago, no Palácio Anchieta.

Foi no mesmo dia em que, pela manhã, eu assisti à reportagem na televisão sobre o desabamento da marquise de um prédio no centro de Vitória. Só não podia imaginar que o desabamento tivesse atingido o fantasma do centro histórico até porque, segundo a jovem repórter, “felizmente não houve vítimas do acidente”.  

“Não morri, meu digno, porque já estou morto. Mas tomei um susto que me deixou atordoado” – disse o fantasma quando me tocaiou numa nesga de calçada na rua Duque de Caxias.  “É por esta e outras que estou dando adeus ao centro de Vitória. A verdade, meu ínclito, a dolorosa verdade, é que o centro está acabando. Só não vê quem não quer, este é o âmago da questão. Está acabando, não! Está pocando, como nós, capixabas, gostamos de dizer. PO-CAN-DO! Ou, na língua do p: popo,canpan,dopô! Passe pela rua do Piolho (ele se referia à rua 13 de Maio, uma de suas obsessões). Veja quantas lojas estão fechadas. Caminhe pela avenida Princesa Isabel: c´est la même chose... Se o centro histórico está indo para o beleléu, seu amigo aqui tornou-se uma triste e quixotesca figura e perdeu sentido continuar sendo quem é. Sim, porque por questão de honra pessoal não posso continuar sendo o fantasma de um centro histórico que perdeu a dignidade histórica!  Em sendo assim, já o fantasma do centro histórico  não sou! À cova escura meu estro vai tornar desfeito em vento, leve me torne sempre a terra dura, digo, à la Bocage – o bom Bocage, não o libertino. Do modo como o centro está se desmilinguindo sob a égide do abandono, dentro em breve tudo isso vai virar um vazio assombroso e irrecuperável. É tal a degradação que nem a choldra de maus fantasmas esvoaça mais por aqui. Escafedeu-se para lugar incerto e não sabido. E eu, de minha parte, também vou embora. Não para lugar incerto, nem para Pasárgada, mas para o meu recanto de origem. Rotulem-me de saudosista, impinjam-me a pecha de covarde, não importa. Pelo andar do descalabro o nosso querido centro histórico vai se tornar uma Guernica. Cada dia fica pior e cada dia é todo dia. Repito com ênfase o provérbio que acabo de criar para uma Vitória que se degrada a olhos vistos: CADA DIA É TODO DIA, meu ínclito! Se não sumi antes, não foi por bancar o último dos Moicanos, mas porque estava querendo me despedir de você.”

Foi com esse discurso disparado em meu peito, em contundente jorro de lamúria, que o fantasma do centro histórico me escorou naquela tarde em que fui à exposição no Anchieta.

Ele estava trajado a caráter, exibindo a mesma anacrônica elegância com me apareceu pela primeira vez (que somente eu conseguia ver): de paletó funéreo, chapéu escuro, gravata borboleta e levemente apoiado na bengala. Fisionomicamente, se é que posso me expressar assim, eu nunca o tinha visto tão abatido.

À nossa vista, compondo um cenário adequadamente espectral, um dos prédios históricos da rua Duque de Caxias exibia, no topo da fachada, um arbusto com folhagem exuberante dando razão ao pranto do fantasma sobre a decadência do centro da cidade. O arvoredo ali parecia mais à vontade do que se estivesse no Parque Moscoso. Puxado pelas palavras do fantasma, um carrossel de prédios históricos que se espalham pelas ruas de Vitória carcomidos pelos germes do abandono desfilou pela minha mente em flagrantes de pesadelo. Não faltou nem um segundo imóvel com outro arvoredo na lapela:

No arrastão estonteante ainda me acudiram à lembrança as ferrugens da ponte Florentino Avidos e o desprezo em que se encontra o Cais do Avião, em Santo Antônio.

O pior é que as más lembranças não ficaram por aí.  Ocorreram-me também as numerosas reportagens de TV sobre os furtos e depredações de prédios que, por estarem fechados ou vazios, são assaltados à luz do dia ou nos lusco-fuscos das matinas para deles ser sacado tudo o que é possível sacar para uso próprio ou para aquisição de drogas. Um entra e sai de larápios (expressão que seria do gosto do fantasma), incólume a qualquer combate policial.

E, em grau ainda mais agudo, veio-me à lembrança a incessante procissão das mortes causadas pelos confrontos entre as corjas de traficantes e bandidos, dos assaltos à mão armada, dos vandalismos depredativos, das balas perdidas e fatais. Tristíssima ruína. Entristece e causa dó olhá-las, como diria Antero de Quental. 

Diante desse espólio de horrores tinha eu condição de dissuadir o fantasma da decisão que havia tomado? Só me cabia aceitá-la, até em nome da nossa excêntrica e persistente amizade (mister reconhecer naquela hora extrema) e também porque eu, que vivi tantos anos no centro histórico, dele já tinha me afastado há muito tempo. 

O fantasma percebeu a minha aprovação à decisão que tomou e disse, com amargura na voz: “O meu carneiro me espera em Santo Antônio. Leve me torne sempre a terra dura! Quanto ao centro histórico de Vitória, never more!”

Num gesto derradeiro, deu-me de presente a bengala dizendo que ela seria mais útil para mim do que para ele e partiu ad aeternum recomendando-me, de dedo indicador em riste, que nunca, “never, never!”, passasse embaixo das marquises de Vitória.

Finalmente, ainda tive a impressão de ouvi-lo dizer, na medida em que se afastava sumindo na névoa da distância: “até breve, meu digno!”

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