O solitário do sábado

Noite de sábado. Já avançada. O cidadão à minha frente deve estar neste restaurante há bastante tempo. Em sua mesa há destroços dos acepipes que lhe estão sendo servidos sabe-se lá desde quando. Destroços está longe de ser uma palavra forte para a situação em que se encontrava seu campo de batalha particular. Restos de comida dispersos em pratos disseminados ao longo da mesa dupla mostravam que o cidadão era gourmet exigente, porque pratos quase intocados se enfileiravam em itens sujeitos a posterior avaliação. Ele os consumiria frios? Sim, como se viu depois. Alguns pratos voltaram à cena e foram devidamente redimidos. Esquisito? Mas foi assim.

Em certo momento chegou um guisado numa grande tigela. O cidadão com seus cento e vinte quilos de peso, no mínimo, esperava o recém-chegado com as duas mãos espetadas na mesa empunhando garfo e faca em atitude de flagrante desafio. O prato seria de seu agrado?  O entrevero deixou de acontecer porque adentrou outro garçom com uma grande bandeja portando uma ave devidamente guarnecida de limões e outros elementos acessórios de variadas tonalidades e impossíveis de serem identificados por quem não fosse um especialista em coisas de cozinha. Enfim, acompanhamentos à altura da imponente ave tostada, em tons acobreados, que aterrissou suavemente no centro de operações. Por momentos, ele baixou a guarda, e garfo e faca pairaram no ar indecisos entre guisado e ave. Ave? Que ave seria aquela? Faisão? Pelo tamanho, talvez. Mas não dava para ter certeza. Resumindo: ele comeu os dois pratos com o auxílio de fartos pedaços de pão que cortava com os dedos. Melhor dizer: estraçalhava com dedos fortes e agilíssimos. Os farelos de pão coalhavam a toalha azulada e juntavam-se aos demais destroços na estranha batalha que se desenrolava nesse restaurante do Itaim,na cidade de São Paulo.

A descrição do insólito episódio estaria incompleta se deixassem de ser mencionadas as bebidas que o solitário do sábado ia consumindo. A hora em que a refrega se iniciara poderia ser medida pela quantidade de frascos sobre a mesa. Uísque, cerveja e vinho mostravam que o cidadão ignorava o conselho prudente de se evitar a mistura de destiladas com fermentadas. Contudo, havia mais e principalmente: uma garrafa de rum de grande tamanho, parecendo edição especial, exibia num rótulo encarnado a típica figura do pirata do Caribe com seu olho tapado, um lenço também vermelho na cabeça, outro no pescoço e um papagaio no ombro. Nunca tinha visto uma garrafa de bebida daquele tamanho. Em espaços regulares o cidadão pedia aos garçons que lhe servisse mais uma dose. Parecia um ritual, porque para as demais bebidas dispensava ajuda externa. Ele mesmo se servia.  No momento em que pedia mais uma dose de rum, quando lhe flagrei um sorriso de homem satisfeito, ouvi a palavra Silver. Mais precisamente, os garçons o chamavam de Señor Silver. Um nome que foi repetido várias vezes até que em certo momento atingiu um longínquo recanto da minha memória e reverberou estupefato em minha consciência.  Silver? Rum? Até mesmo uma cançoneta insossa chegou às minhas lembranças. Vinha misturada com uma voz roufenha, rascante e sem a menor graça: ”Quinze homens na arca do morto... e uma garrafa de rum”. Ainda: ”moedas de ouro, moedas de ouro...”. Ali estava uma pista, a única, a que me agarrei com vigor. Silver, não é? Uma ressalva: não estava sendo indiscreto ao observar os excessos gastronômicos desenrolados à minha frente. Impossível deixar de observar a cena que se passava ali, já que não havia nenhuma reserva na forma de servir dos garçons e o cidadão era a própria imagem da descontração e, mesmo, irradiava certo ar de felicidade. Em suas conversas com os garçons percebia-se que havia intimidade entre eles. Conversas que às vezes terminavam em ruidosas gargalhadas, surpreendendo não apenas a mim como aos demais fregueses. Silver, não? A hipótese a que me agarrava para explicar tais cenas: ali estaria John Silver tetra ou pentaneto do pirata da “Ilha do Tesouro” comemorando o aniversário de algum feito do famoso bucaneiro no mar do Caribe. Porque o comemorava num restaurante de São Paulo não tinha nenhuma explicação e seria forçar demais a barra imaginar alguma. 

Quando saí do restaurante ele ainda continuava em sua faina comilona e beberrona. Tive vontade de lhe lançar uma isca. Algo como “E o Cão Negro, hein?” Deixei de dizer qualquer coisa. Afinal uma reação interrogativa dele me deixaria órfão de qualquer explicação para aquela farra pantagruélica.

 

Leia outros textos