Marcas

O “Diamond Head” ao longe. Mas não tão longe.  Estou na praia de Waikiki  e, como desde a época de   “A um passo da eternidade”, Burt Lancaster e Deborah Kerr sentavam-se aqui  num banco, de costas para ele e de frente para  o Oceano Pacífico, creio que posso fazer o mesmo. Ou seja, o “Diamond” é um vulcão confiável e não me fará ursada. Vai ficar quieto ali mesmo, com aquelas pontas que podem parecer agressivas, mas – penso convicto - não passam de arranjo cênico. “Um vulcão extinto” - dizem os especialistas com a certeza de uma observação sistemática de duzentos anos. A mãe Terra os olha do alto de seus bilhões de existência e dá um sorriso condescendente.

No outro lado da ilha é o altaneiro espinhaço que corta Oahu de ponta a ponta, com seus cumes sempre mergulhados numa neblina misteriosa e onde certamente habitariam os deuses dos polinésios antigos. Mas agora esse espinhaço me fala de coisa bem mais recente. É o próprio “A um passo da eternidade” que me faz lembrar aquelas vespas zangadas voando por cima dele e atacando os navios fundeados na baía de Pearl Harbour.  Os “zeros” japoneses anunciavam a entrada do Japão na guerra contra os Estados Unidos. A lembrança é mais forte para quem é contemporâneo da Segunda Guerra.

Lembrei-me do anúncio no hall do hotel falando de uma visita a Pearl Harbour. Voltei lá e embarquei num carro para ir até a famosa baía junto com um grupo de pessoas que logo me pareceram herdeiros da torre de Babel. Línguas de sons desconhecidos. Ninguém se entendia. Apenas uma certeza anunciada pelo motorista do carro, um jovem universitário americano que fazia um bico para sustentar suas férias: estávamos mesmo indo para Pearl Harbour.

Vitorienses de minha época, leitores de Somerset Maughan, podem bem avaliar o que é visitar uma ilha dos Mares do Sul. Ou seja, descobrir o mundo tropical. Vivíamos no trópico, mas não sabíamos. Aquele ali era o trópico “verdadeiro” formado por truques da arte literária e do cinema. Enquanto viajava matutava sobre tais coisas e olhava para aquelas praias belíssimas e suas palmeiras coadas por um sol brilhante.

Chegamos.

Nós, herdeiros da Babel, fomos cada um para seu lado. Ali na frente, um oficial da marinha americana, num microfone, recordava detalhes do ataque japonês e afinal nos convidava para um filme que mostrava os acontecimentos de 7 de dezembro de 1941, um domingo.  Cenas como uma repetição do “A um passo...” Depois, tomamos um barco e fomos até o local onde está afundado o cruzador “Arizona” a uma profundidade onde as águas cristalinas deixavam ver com nitidez a torre de comando rodeada por cardumes de peixes coloridos.  Numa placa dourada, o nome de todos os que pereceram naquela batalha e que são qualificados como “Gallants men”. A guerra.

Na volta, o mar picado me jogou muita água no rosto enquanto um sol de fogo mergulhava nas águas do Pacífico. No meio da beleza persistia um gosto de pólvora e sangue na boca. A guerra. Por que fazer a milenar pergunta? Os “selvagens japoneses” versus “bárbaros ocidentais”? Estava saindo de recentes experiências na área da educação que desmentia os estereótipos e tanto japoneses como americanos me provavam isso com seu apoio a projetos de interesse coletivo. No caso japonês, o fornecimento de sofisticados equipamentos e respectiva transferência de tecnologia (durante cinco anos) para instalação no Espírito Santo do mais avançado centro de instrumentação industrial da América Latina, a fundo perdido. Benefícios para nossos jovens, com ensinamentos de tecnologia de ponta. No caso dos americanos, o auxílio para um centro de formação profissional também destinado a jovens capixabas.

Está aí o Hélcio Rezende Dias, então presidente da Findes, que deu apoio decisivo a tais projetos do Senai e que pode contar a história. 

Um dístico numa faixa na igreja católica de Santa Isabel podia parecer um lugar comum até mesmo para aquele menino. Ainda hoje sinto no ar exclamações de que se trataria de mera platitude. Dizia a faixa: “Paz na Terra aos homens de boa vontade”. Ora, ora, dirão céticos empedernidos. Por muito que se vê agora há mesmo uma tentação para aceitar esse desânimo ceticista. Mas naquele momento, não. Recordava a figura do Dr. Sasaki, que um convencionalismo poderia qualificar como protótipo do “sábio oriental”, e os corolários típicos, explorados, por exemplo, pelos que escrevem livros de autoajuda e não dispensam a figura mística do sábio que sabe absolutamente tudo. Tantas vezes descrito como um macróbio “apoiado em seu cajado, meditando à beira do rio...” Sasaki, o japonês, tinha a barbicha característica, um olhar perdido em especulações insondáveis, mas não tinha nada do “sábio oriental” da carochinha. Era um homem plantado em seu tempo e com opinião firme sobre o papel do Japão (na época a segunda potência econômica do mundo) no campo da cooperação internacional. Ele era o principal executivo japonês dessa área e tinha a convicção de que seu país precisava fazer amigos no mundo. Dizia que nenhum país pode prescindir disso por mais poderoso que fosse num momento dado. Nos inevitáveis momentos ruins precisa da cooperação dos amigos. À frente do “Overseas Vocational Association” procurava atingir esse objetivo. Enfim, alguém do grupo da “boa vontade” que se concretizava em minha frente.

Inevitável pensar na metáfora do “cabo de guerra”. De um lado da corda os da “boa vontade” e, do outro lado, os demais. Avanços e recuos das equipes dando as marcas de um tempo.

O “Diamond Head” fazia a sua parte porque ficou lá, bem quieto, olhando pacificamente as areias alvíssimas de Waikiki.

 

Leia outros textos