As velhas filas da carne e do açúcar

Canhões ou manteiga? Esta uma questão elementar proposta pelos manuais de Economia para ilustrar teoricamente as possibilidades de produção de uma sociedade econômica qualquer. Uma decisão que poderia ser política ou de mercado caso se tratasse de uma sociedade com controles econômicos centralizados ou não. Se fosse uma sociedade onde houvesse liberdade de produção e consumo, o mercado não iria produzir apenas um dos dois artigos, ou melhor, dos bens (caso se possa classificar um canhão de bem). Vai tentar, por tateios, descobrir qual a melhor combinação entre eles para obtenção de lucro por parte dos produtores e de satisfação por parte dos consumidores. No caso das sociedades centralizadas, “a decisão é esta e estamos conversados”, ainda que se possa ter como pressuposto o bem-estar geral.  Mas me dou conta que descambei para um impróprio economês quando a intenção era apenas falar de um certo  tempo da Segunda Guerra aqui em nosso país, ou melhor, no ES, ou ainda, em Jucutuquara, principado anexo à cidade de Vitória, portando, ao menos naqueles anos, uma Constituição própria, mesmo que não escrita. Mas há propósito em falar de filas porque a economia de guerra pressupõe certo tipo de controle similar ao mencionado no início.  Por isso, vamos lá.

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“Este livro não é você!”

“Claro que é”.

“Me lembro que até no outro dia você era um paralelepípedo e agora você vem me dizer que é esse livro aí só porque está logo no princípio da fila? Cuidado que o dono do livro pode chegar e você vai ficar com cara de besta.”

Não, não é trecho de peça de teatro prafentex. O diálogo seria possível naquele tempo da “fila da carne” diante do açougue do Sizino, na Avenida Alberto Torres, na Jucutuquara dos anos quarenta.

Quem já experimentou uma fila daquelas sabe do que se trata. Imagine levantar de madrugada para enfrentar a fila do Sizino. Lá ficavam eles esperando o açougue abrir e se colocando na ordem de chegada. Era preciso situar-se bem na fila porque quem estivesse na rabeira, quase sempre ficava na pior. A carne acabava antes de chegar a sua vez. A velha lei do menor esforço acabou entrando em ação. Acordar cedo, tudo bem. Mas mofar na fila até às oito horas quando o açougue abria? A solução para os madrugadores? Cada um colocaria um objeto na fila para representá-los e depois iam dormir um pouco mais.  Havia uma pequena cadeira de balanço que representava um senhor de idade, funcionário público aposentado, um abajur que era a mocinha que morava na frente do estádio e por aí. Fui primeiro um caderno “capa de aranha” que depois foi substituído por um livro. Solução prática, mas que de vez em quando dava problema como na conversa falada acima.

Enfim, em plena Segunda Guerra, enfrentávamos o problema de grande escassez de produtos de primeira necessidade, já que as possibilidades de produção deviam levar em conta necessidades do esforço bélico. Além do mais, as grandes dificuldades de comunicação entre centros produtores e consumidores. O Atlântico Sul era zona de guerra e, portanto, o açúcar do Nordeste, por exemplo, tinha dificuldade em chegar aqui. Aliás, essa era outra fila famosa. A “fila do açúcar”.  A maior que conheci era a da Vila Rubim. Ia do bar do Lopes, ali na subida da Rua São Simão até o Clube Stá Cruel na Duarte Lemos. Eles não aplicavam a racionalização de procedimento como no caso do recurso aos objetos da fila da carne de Jucutuquara. Ficavam ali, firmes, conversando, discutindo e até brigando, como vi algumas vezes. Mais uma vez, Jucutuquara estava à frente de seu tempo ainda que o sistema não fosse tão aperfeiçoado de modo a eliminar completamente as espertezas dos eternos espertos. O que é, como se sabe, quase impossível.

Pão era a coisa mais difícil. De manhã cedo, o estribilho do vendedor: "muxá de coco”, “muxá de coco”. Melhor que o muxá era o “bolinho de arroz”, “bolinho de arroz”. Pão branco? Quando vinha, era uma mistura de trigo com farinha de mandioca que fazia o pão ficar parecendo um pedaço de pau. Bons tempos? De minha parte, dispenso. Mesmo porque, nessa área, não estou certo de que as “possibilidades de distribuição” seguindo normas da economia de guerra tenham sido usadas de forma correta, ou melhor, de forma mais justa. Mas isto já é economês misturado com moral tomista e fica para depois...(talvez).

 

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