O fantasma contra Bernardino Monteiro

Eu tinha saído de uma casa convertida em loja de produtos ortopédicos, na  rua Bernardino Monteiro, no Parque Moscoso, onde fui comprar uma joelheira anatômica, quando me defrontei com o fantasma do centro histórico de Vitória.

- Vendo-o sair daí me afloram à lembrança as muitas vezes em que visitei essa casa – disse ele. – Ela pertenceu à viúva de um capitão da Polícia Militar. O quartel ficava onde foi construído o SESC. Até hoje não me conformo com sua demolição, nem com a transformação das casas desta rua, onde residiam famílias de funcionários públicos e militares, em lojas comerciais. Bons tempos aqueles!

- Os do quartel ou da viúva? – provoquei-lhe a nostalgia.      

Ele se sacudiu num riso impudico e disse: - Sobretudo os da viuvinha, a minha querida capitoa – enquanto um lampejo de saudade erótica coloria ligeiramente o seu semblante citrino.

- Capitoa?! – estranhei o tratamento. 

- Era como eu a chamava com carinho, numa alusão ao falecido.

- Ela não se zangava? – perguntei.

- Era do gosto dela, pois tinha sido infeliz com o marido, um mulato inzoneiro e truculento. Não deixava de ser uma desforra póstuma, um mecanismo de compensação psicológica pelo que sofreu em suas mãos. Mãos ásperas e duras, como ela dizia no seu boudoir, sentadinha de pegnoir transparente no pufe da penteadeira com as belas pernas cruzadas e de fora, desfiando languidamente com pente de tartaruga os cabelos sedosos e curtos que rescendiam a cedro, os grampos presos nos lábios róseos, um pitéu à minha disposição! Alguma vez na sua vida você teve o privilégio de tirar as ligas a uma bela mulher, meu digno?

- Jamais, meu amigo, jamais.

- Pois eu não só tirei muitas vezes as ligas da minha teteia como as pus de novo para prender-lhe as meias – rememorou o fantasma com o mesmo lampejo de saudade erótica que exibira antes. - Aliás, teteia é pouco para exprimir o que ela era. Lembra-se da célebre vedete francesa Mistinguett? Não, você não se lembra porque perdeu esse tempo. A capitoa era uma verdadeira reprodução da vaporosa Mistinguett, tão parecida com ela que seria capaz até de cantarolar Mon homme ali na minha frente, só para me comprazer. (E o fantasma, na tentativa de me dar uma perfeita reconstituição de época, se entregou a cantar em francês, num ridículo esforço de chansonnier anachronique):

Sur cette terr’, ma seul’ joie,
Mon seul bonheur,
C’est mon homme.
J’ai donné tout c’que j’ai,
Mon amour et tout mon coeur,
A mon homme.

A capitoa, meu digno - disse cessando a tempo a alegre cançoneta -, era uma mulher distintíssima, formada professora no Colégio do Carmo no tempo da primeira superiora, a irmã Filomena Desteillon. Basta dizer que leu todos os livros de M Delly, da coleção Biblioteca das Moças, que, por sinal, foram miseravelmente queimados pelo capitão num dia de rancor e fúria. Como você vê, ela não merecia o meganha violento e ignorantão que lhe coube por consorte. Consorte sem sorte que ela teve (e o fantasma gargalhou satisfeito da genialidade do trocadilho). Mas já naquele tempo, écoute-moi, eu não me conformava com o nome de Bernardino dado a esta rua – concluiu empurrando o assunto para outro campo.

- Implicância pessoal? – indaguei.

- Pode chamar assim. A verdade é que Bernardino causou muitos danos históricos ao Espírito Santo – observou de cenho brumoso. 

 - Que danos históricos? – inquiri com interesse de historiador.

- Escuta só, meu digno. Bernardino, como presidente do Estado, teve grande responsabilidade na derrubada da matriz histórica de Nossa Senhora da Vitória, para dar lugar à construção da Catedral Metropolitana, uma obra de estilo arquitetônico discutível que parece um paliteiro com as pontas espetadas para cima, na cidade alta. A única coisa que se salva ali são os vitrais, e assim mesmo os antigos, porque os novos, com aquelas cocadinhas azuis e vermelhas atrás do altar-mor, são de extremo mau gosto, destoando agressivamente dos demais. Vá lá e verifique. A demolição da matriz foi um atentado inominável ao nosso passado colonial. Eu a classifico como dano histórico.

Resolvi bancar o advogado da História e contestei:

- Você está se esquecendo, meu caro amigo, que quem determinou a demolição da igreja foi o bispo Dom Benedito Alves de Souza, numa decisão estritamente eclesiástica.   

A réplica do fantasma foi imediata:

- O argumento é troncho! Dom Benedito era um paulista sem ligações com as tradições do Espírito Santo. Devia ter sido impedido por Bernardino. Como presidente do Estado, Bernardino tinha a obrigação moral, veja bem, mo-ral, de se opor à demolição. Autoridade não lhe faltava para tanto. Mas nem sequer levantou o mindinho anelado para impedi-la. Dobrou-se à vontade do bispo, tornando-se cúmplice de um imperdoável achaque à nossa história, eis o âmago da questão! Eu tenho para mim, meu digno, que a Dom Benedito ofendia a visão diária da modesta e sóbria igreja matriz de Nossa Senhora da Vitória, que ele via do palácio episcopal. Lembra-se do palácio? Era um sobrado sorumbático, de janelões sinistramente fechados que davam para a matriz, na atual rua José Marcelino. Ficava no lugar em que se construiu um edifício residencial...   

- O Belatrix, obra da CIEC – disse eu, que tinha a informação que o fantasma ignorava.

Ele pareceu não me ouvir: - Bota também a derrubada da segunda torre da igreja de Santiago, atual palácio Anchieta, na conta dos danos históricos da responsabilidade de Bernardino.

- Calma lá, meu caro! Quem a derrubou foi Nestor Gomes, que sucedeu a Bernardino no governo do Estado... – aparteei-o com firmeza para corrigir o grosseiro desvio de responsabilidade histórica que estava cometendo.     

 - Eu sei que a responsabilidade direta foi de Nestor. Mas a indireta foi de Bernardino, que garantiu a posse de Nestor no governo do Estado, você se esqueceu?

E sem que eu pudesse retrucar, o fantasma prosseguiu em seu derrame verborrágico: - Uma posse desastrosa, sob tiroteio. Sabe por quê? Porque ao apoiar Nestor, Bernardino criou uma cisão incontornável com Jerônimo Monteiro. Logo com o admirável Jerônimo Monteiro, que era irmão dele, mas contrário a Nestor. O conflito provocou o rompimento político entre os dois irmãos, e naquele momento só não se transformou numa sangrenta tragédia shakespeariana graças ao comedimento do próprio Jerônimo, que conteve a ação dos seus partidários com uma frase que até hoje não esqueço, porque eu estava lá, de carabina em punho, e a ouvi com todas as sílabas: ‘lembrem-se de que quem está em palácio é meu irmão!’ Graças à intervenção de Jerônimo o sangue não maculou a escadaria do palácio! Estou recordando esses fatos, para você ver que, se não fosse Bernardino, a torre da igreja de Santiago ainda estaria de pé, embora o responsável direto pela derrubada tenha sido Nestor Gomes. Além do mais, que grandes obras Nestor realizou durante o seu governo? Aponte uma, aponte!

- O Palácio das Águias... – respondi num contratapa.

- O palácio não passou de um monstrengo inútil, plantado no morro da Santa Clara. E para quê? Eu pergunto e eu respondo, matando a cobra e mostrando o pau: para ser a residência de repouso presidencial, onde Nestor dormia seus soninhos sob a aragem do morro da Santa Clara. Parece que eu o estou ouvindo dizer, nos dias de céu nublado: ‘Santa Clara clareai, Santa Bárbara alumiai’. E você sabe muito bem, porque é do seu tempo, o triste destino que teve aquela estrovenga, antes de cair aos pedaços: tornou-se sede do Orfanato Santa Luísa e serviu, depois, de grupo escolar ali pessimamente acomodado. Danos históricos, meu digno, danos históricos! Não é sem razão que nem Bernardino, nem Nestor têm bustos na praça Costa Pereira. Mas lá estão os quatro grandes da velha república estadual: Afonso Cláudio, Muniz Freire, Jerônimo e Florentino Avidos. Um senhor naipe de governantes! Na minha opinião, écoute-moi, e veja se não tenho razão: o máximo que poderia ter acontecido politicamente a Bernardino era ser prefeito de Cachoeiro de Itapemirim, eis o âmago da questão. E já era muito.    

Quando terminou de desfiar o trambolhão de diatribes o fantasma estava ofegante. Dei tempo para que recuperasse o fôlego e disse, tentando ser justiceiro:

- Bernardino deu o azar de governar o Estado na fase mais aguda da Primeira Guerra e ainda enfrentou a gripe espanhola, que em 1918 contaminou em penca a população capixaba.

- Não desculpa os danos que causou à nossa história – rebateu o fantasma emburrado, o que não era nada agradável de ser visto. – Quando assumiu o governo, em 1916, ele sabia das dificuldades que ia enfrentar. E a gripe... Sabe de uma coisa, meu digno? Você pode até achar estapafúrdio, mas eu tenho para mim que a gripe espanhola chegou ao Espírito Santo como castigo pela derrubada da velha matriz da Capital. É o que eu penso! Culpa de Bernardino!  

Diante deste disparate, concluí que não dava para continuar conversando com o fantasma sobre política e história. Nem me atrevi a lembrar-lhe que enquanto ele responsabilizava Bernardino pela demolição da torre da igreja de Santiago, fazia vista grossa à reforma que o seu idolatrado Jerônimo Monteiro promoveu no velho templo, ex-colégio dos jesuítas, para modernizá-lo como palácio governamental.

- Já vi, meu caro fantasma, que Bernardino deixa você de mau humor, exorbitando do bom senso histórico. Vamos mudar de assunto.

- Está querendo retornar à capitoa? – perguntou malicioso.

- A jogada é sua... – disse brincando.

- Eu podia dizer que passo. Mas para deixar você com água na boca, digo que a capitoa fazia umas ambrosias divinais. Você já comeu ambrosia? Pois era de provar as que a viuvinha me servia toda dengosa, numa taça de cristal Baccarat! Eu me sentia um deus olímpico! – disse o fantasma diluindo-se numa gargalhada obscena, deixando-me com uma doce saudade das amarelinhas ambrosias que minha mãe fazia na minha infância, mesmo sendo servidas em pratinhos comuns e sem a companhia de uma amável capitoa como a vaporosa Mistinguett, de pernas cruzadas e à mostra, desfiando com um pente de tartaruga os cabelos curtos e sedosos... 

 

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