Na rua do Vintém, tanajura tem

Que a rua do Vintém ainda mantenha este nome, no Centro de Vitória, não tendo mudado para doutor Fulano de Tal, como temeria o poeta, é um espanto.

Mas espanto maior é que indo eu em perambulação distraída pela via enladeirada e sem saída, topasse de repente, numa manhã de primavera, com uma tanajura se debatendo na calçada, onde quase a esmigalhei com o pé. E logo depois, outra – morta. E à frente desta, mais outra, indicando, para espanto dos espantos, que uma revoada de formigas aladas precedera minha passagem por ali, fenômeno que eu imaginava página virada pelo menos há seis décadas, na história da altiva e gloriosa cidade de Vitória.

 “Enxotando tanajuras com o pé, meu digno? Elas voltaram como nos bons tempos, porém em levas diminutas”, soprou, no pavilhão da minha orelha, a manjadíssima voz do fantasma do centro histórico de Vitória, sem que a aparição fantasmal onde minutos atrás varejavam tanajuras pelo ar, me causasse novo espanto, visto completar com perfeição o quadro de uma Vitória antiga, mas não de todo sumida, naquela manhã na rua do Vintém.

“Pensei que fossem marimbondos mortos”, disse eu.

“Marimbondos nada! Eu estava aqui quando o bando de formigas criou asas e voou”, relatou a voz rouquenha e abafada. “Elas formaram uma nuvem de pouca densidade, que entrementes se dissipou quando se abateram pelo chão, perdendo as asas. Mas a minguada revoada durou o bastante para me dar uma saudosa água na boca das tanajuras fritas da minha infância, preparadas com toucinho e comidas com farofa, trazendo-me à lembrança a algazarra que fazíamos para pegá-las, cantarolando cai, cai, tanajura, na panela de gordura”, choramingou meu interlocutor. E indagou neurastênico: “Você também foi papa-tanajura? Vai ver que, tal qual o comendador Deodato, meu amigo diletíssimo, você nunca teve o prazer glutão de triturar nos dentes um bando de tanajurinhas rechonchudas e crocantes (e o fantasma silabou crocantes como se estivesse mastigando uma tanajura saída da frigideira). Porque, no caso do comendador, que primava por ser um varão ilustre e refinado, cheio de reservas para com as coisas do povo, repugnava comer certo tipo de alimento, como ostras catadas nas pedras das praias ou caranguejos socados com martelinhos de madeira, em festins intermináveis. Tanajuras então nem se fala. ‘Comida de índio’, dizia fazendo cara de repulsa. Até hoje tenho pena dele, porque perdeu grandes prazeres na vida” - e o fantasma deu-me a impressão de que limpava disfarçadamente com a mão turva a gosma grossa da saudade das tanajuras, ostras e caranguejos que comeu em vida e regurgitava pela boca rota com décadas de atraso. 

Desconsiderei a babugem bovina que entrevi e me concentrei no proustiano piparote descritivo que ele havia feito da caçada às tanajuras. E, mesmo a contragosto, senti-me igualado a ele em relação ao tempo em que, geralmente no mês de outubro, quando o verão punha as grudentas unhas de fora em plena primavera, milhares de saúvas se transformavam em tanajuras adensando-se em voos silenciosos e pesados pelas ruas e praças de Vitória até despencarem no chão, onde perdiam as asas cor de mel morrendo atopetadas em montículos pixains. 

O cai, cai, tanajura, na panela de gordura era o bordão de guerra, a conclamação à farra da caçada à nuvem transitória, que movimentava a garotada e a gente humilde da cidade para pegar o máximo de tanajuras em pleno voo numa prova de destreza competitiva, antes que se precipitassem no solo para sucumbir.

Eu também me envolvi nessas aventuras álacres, apesar de nunca ter comido tanajura e provado do gosto de cravo que seus comedores diziam deparar nas calipígias protuberâncias fritas dos precários voadores, não sabendo até hoje o que perdi, para levar em conta as melancólicas palavras do fantasma.

Cheguei a fantasiar que se não fosse tão grande a diferença de idade entre mim e ele, talvez pudéssemos ter nos juntado num outubro qualquer da nossa infância para a mesma captura das esvoaçantes tanajuras capixabas.

E pela primeira vez desde que o conheci e desde que me azucrina a paciência com suas aparições inconvenientes e verbosas, invadiu-me uma sensação de igualdade e afeição para com o outro (sendo o fantasma o outro), a quem, no entanto, costumo tratar com restrição e pé atrás, mas que, graças às tanajuras do Vintém, revelou-se meu irmão-camarada, se bem que na fugaz fraternidade de uma manhã primaveril.

“Você tem razão, meu digno”, disse eu, emergindo da minha romântica regressão nostálgica. “Foram bons tempos aqueles, apesar dos exércitos de formigas que infestavam nossas terras” – concluí histórico e evocativo, lembrando-me, num átimo de associação de ideias, da multidão agressiva de formigas que pôs em fuga, nas matas de Santa Cruz, o pintor francês François Biard, que esteve no Espírito Santo no século XIX. 

“Mas graças às formigas havia tanajuras nas panelas de gordura”, recordou o fantasma, suspiroso.

“E comida para o povo”, pilheriei.

“Comida de índio, não se esqueça”, disse ele numa alusão ao comendador Deodato, o que provocou em nós um riso contagiante de irmãos-camaradas, antes que o fantasma desaparecesse da minha vista na rua das tardias tanajuras mortas, onde existiu outrora a chácara do Vintém, na altiva e gloriosa cidade de Vitória. 

 

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