Carta aberta a Luís de Almeida
acerca de um engano literário

Meu estimado e sumido Luís de Almeida:

A você, que durante três anos, quase mês a mês, manteve nas páginas da extinta revista Você, da Secretaria de Produção e Difusão Cultural da Universidade Federal do Espírito Santo, a coluna de crônicas intitulada Escrivão da Frota, dedico esta carta aberta, pois que a outro não poderia ser endereçada senão a você mesmo, como salta evidente do que nela se contém.

Move-me ao escrevê-la o propósito de fazer uma confissão que não quer calar, e que tem por objeto a crônica que você publicou no n° 19 da revista, sob o título A cidade invisível, lembra-se dela?

Da minha parte, nunca a esqueci, por três fortes razões: 1ª) fui eu que lhe sugeri que lesse o livro de Ítalo Calvino, As cidades invisíveis, cuja leitura me causara excelente impressão, e em que você acabou se inspirando para escrever seu texto; 2ª) porque ao escrevê-lo, você tomou por base não apenas a minha (nossa) querida cidade de Vitória (Airovit na sua versão), mas também uma das mais marcantes tradições da velha urbe capixaba, de feições ainda colonialistas no final do século XIX e começo do seguinte, com a população dividida em duas facções antagônicas e rixentas, os peroás e os caramurus, numa ardente devoção a São Benedito; 3ª) porque - e não vejo motivo para omitir esta minha opinião, ainda que possa não ser correta - sempre achei sua crônica primorosa, tanto no estilo, quanto no conteúdo, a ponto de me causar um misto de inveja não ser o seu autor e de enlevada satisfação por ter sido quem levou você a escrevê-la, a partir de As cidades invisíveis.

Desde então, passaram-se mais de vinte anos, meu caro Luís de Almeida, uma vez que a crônica foi publicada em janeiro de 1994.

Significa dizer que eu li o livro de Calvino nessa ocasião, sem que nunca mais tivesse retornado às suas páginas para o prazer de uma releitura.

Em minha lembrança fixou-se, porém, (acentuando-se à medida que passava o tempo), a convicção de que o conjunto dos textos de As cidades invisíveis constitui-se num dos pontos máximos da criação ficcional de Calvino.

Essa convicção me dominou de tal forma que muitas vezes me flagrei a alardeá-la alto e bom, sempre que surgia uma oportunidade de falar da literatura do grande escritor italiano.

Natural, portanto, que fosse se fomentando em meu espírito um desejo de revisitar os textos lidos há tanto tempo, para um reencontro de prazer estético que a boa e saudosa lembrança da obra em mim provocava.

Como não mais achei entre os meus livros o antigo exemplar de As cidades invisíveis, acabei comprando outro. E o fiz prazerosamente, prelibando uma releitura que valeria a pena.

De livro novo nas mãos, percorri-lhe as páginas em cirandas saltitantes.

Mas... pasme, meu caro Luís de Almeida: para minha estranheza, não tinham sido aqueles os textos que haviam ficado em minha lembrança!

Os textos de que me recordava eram outros, jamais escritos por Ítalo Calvino, portanto, inexistentes.

Não estou desmerecendo a qualidade literária dos textos efetivos de Calvino, nem fazendo comparação de valor entre eles e a sua crônica, meu caro Luís. Estou falando de um modelo de texto que foi usado por você, em seu escrito sobre a cidade invisível de Vitória, que eu, ao longo do tempo, memorizei erroneamente como sendo o modelo produzido em As cidades invisíveis.

Também não estou negando que o que você escreveu guarde pontos de contato com o que escreveu Calvino, em termos de temática, já que dele veio, por sugestão minha, a inspiração para sua crônica.

O que tento dizer é que a diferença flagrante – ou flagrada por mim ao me dar conta da minha lembrança equivocada ao reler As cidades invisíveis – está na linha estrutural e expositiva das duas situações textualmente comparadas, que se confundiram em minha retentiva como coisas semelhantes, ou seja, do mesmo feitio ou padrão, se assim posso me expressar. Mas a verdade é que a forma e o estilo do que você escreveu acabou prevalecendo como sendo a que eu deparara (sem ter deparado) em As cidades invisíveis. Estou assim confessando o engano literário de que fui vítima, causado por uma memória traidora.

Um blefe (ou ato falho?) digno de registro numa crônica que talvez você, com mais competência do que eu, seja capaz de escrever um dia.

Esta é a minha aposta, que espero que você encampe.                              

Abraça-o fraternalmente,

Luiz Guilherme.

 

Nota do editor: Luís de Almeida foi o pseudônimo com que Luiz Guilherme assinou crônicas na revista Você.

 

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