Uma perseguição fantástica  

Para mim, um dos cantos sombrios do centro de Vitória, principalmente quando o sol ali não mete a cara, é o início da escadaria da Misericórdia, na junção com a rua Duque de Caxias. Dali, a escadaria se projeta até a praça João Clímaco, depois de cortada transversalmente pela rua Nestor Gomes que, todavia, não lhe modifica a trajetória.

Foi neste recôndito da cidade que o fantasma do centro histórico de Vitória passou por mim, numa tarde cinzenta e úmida, de vento sul cortante, fingindo não me conhecer. Pareceu-me até que tivesse ficado de cara amarrada ao me deparar pela frente, tanto que rapidamente se embarafustou escadaria acima, antes que eu lhe dirigisse uma palavra de mera e educada saudação.

Mal recuperado do acontecido, não me contive: lancei-me no seu encalço, desejoso de saber a razão que o levara àquela atitude de repúdio, tão ostensivo e incomum da parte dele. E na medida em que o perseguia me vi mentalmente mergulhado numa aventura fantástica em que eu é que perseguia um fantasma (e não o contrário) pelas ruas de uma Vitória antiga, porque somente num cenário de páginas viradas seria plausível que uma criatura viva saísse em desabalada carreira atrás de um avantesma fugidio. Nesse picolê surrealista, galgo apressadamente a ladeira da Misericórdia, de cujo topo diviso o fantasma entrando na rua da Assembleia, pela qual também enveredo. Logo adiante, depois de passar pelo largo de Santa Luzia, seu vulto esvoaçante se enfia pela rua Grande na direção da ladeira da Pedra, dando-me a impressão de que iria alcançar o largo da Conceição, embaixo. Mas errei na suposição. Num voejo de meia-volta, o fantasma cruza por cima da minha cabeça e embica para a rua das Flores onde, porém, não entrou, preferindo descer pela ladeira do Pelourinho em direção à rua da Praia, na cidade baixa. Mantenho-me no seu encalço, reunindo as últimas energias de que disponho. Mas ao chegar ao fim da ladeira o fantasma havia se eclipsado. Quando pensei que já o tivesse ingloriamente perdido para um vis-à-vis franco e honesto, eis que irrompe ao meu lado como se tivesse despenhado de um beiral de telhado velho.

“Por que você está me perseguindo?”, perguntou com aguerrido mau hálito.

“Porque quero saber o que aconteceu. Você passa por mim e, ao contrário do que sempre faz, finge que não me vê, foge chispado pela escadaria da Misericórdia como se tivesse visto um fantasma (me perdoe a comparação), e, misericórdia! não quer que eu estranhe sua atitude, nem que queira saber o que está se passando? Acho que é um direito meu receber uma explicação da sua parte, porque é um mínimo de consideração que você me deve pelas vezes que o tenho aturado pacientemente”.   

“Viu, viu só?!”, exclamou o fantasma crispando a boca murcha.

“Viu o quê?!”, irritei-me.

“O que você acabou de dizer: que tem me aturado pacientemente! Por estas e outras é que eu cheguei à conclusão de que você não gosta de mim, eis o âmago da questão, e que se pudesse fugiria da minha presença como eu fugi da sua ainda há pouco.”

“Quem botou isso na sua cabeça, meu caro?” perguntei querendo tirar por menos a sua conclusão, mas que, no fundo, no fundo, não era de todo infundada.

“Ninguém botou nada na minha cabeça. Fui eu mesmo que, numa iluminação retropsíquica, que você ainda não pode compreender porque não é um fantasma, cheguei a essa triste conclusão, juntando lembranças e passagens dos nossos encontros, reavaliando gestos e rememorando frases das conversas que tivemos, lembrando das tiradas irônicas que você já usou para comigo só faltando me chamar de pantasma, e até do mal-estar que eu lhe causo quando declamo versos na sua presença, pensa que eu não noto? Sou capaz até de tirar a prova dos nove agorinha mesmo...”   

“Não é preciso se dar a este trabalho, meu caro fantasma...”, atalhei procurando dar um tom conciliador ao meu pedido, o que de nada adiantou porque ele lascou em altas vozes:

 

“Salve amigos fiéis que alguns conservo 
Dos muitos que contei quando eu valia!
Meus caros compatrícios,
Recebei meus abraços
A todos vos saúdo!”

        

“Sabe de quem são os versos?” perguntou, por fim.

“Não faço ideia”.

“Do padre Marcelino Pinto Ribeiro Duarte, meu ínclito. Um homem sofrido, perseguido, incompreendido em sua vida, mas valorizado pelos amigos, aos quais dedicou aqueles versos, me fiz claro?”  

Claro que ele se fizera claro, aliás, claríssimo. De certa forma fiquei até aliviado de não correr o risco de ser considerado um dos seus caros compatrícios e merecer ali, de pronto, um apertado abraço fantasmal.

“Mas como ia dizendo”, continuou ele, loquaz como sempre, “tudo o que lhe estou contando aflorou aos meus sentidos, que ainda os tenho apesar de morto, e aflorou com força mnemônica repentina. Portanto, insisto em dizer: você não gosta de mim e talvez apenas me tolere por educação, este é o âmago da questão.”

Voltei a insistir que ele estava errado a ponto de exigir, num desafio temerário, que provasse a acusação que me fazia.

“Não preciso ir muito longe”, rebateu o fantasma. “Lembra-se do nosso último encontro, quando você me aconselhou que tomasse um banho no chafariz do Parque Moscoso para me livrar do mau cheiro de um churrasco que me pegou na praça do quartel? Eu tomei o banho e o cheiro não sumiu. Aí eu vi que você estava zombando de mim.”

“Meu caro fantasma”, disse eu, “a sugestão que lhe dei foi com absoluta boa-fé. Não tenho culpa, e até duvido, se o cheiro do churrasco permanece grudado em você”.  

“Sinta-o, por favor, porque mentir não é comigo”, disse ele avançando sobre mim com a agressividade de uma assombração. A aproximação foi tamanha que eu teria ouvido o seu arfar respiratório, se fantasma respirasse.

“Você não está cheirando a churrasco coisa nenhuma, meu caro”, disse eu, que apesar de me safar agilmente para o lado não pude deixar de sentir o seu característico ranço de bolor, mas não o cheiro de churrasco de que ele reclamava.

“Se o que você diz é verdade, então por que eu ainda sinto em mim o maldito fedor de vianda engordurada? Será que para me livrar dele terei de me banhar na bacia das almas ou consultar o meu dileto amigo doutor Chapot Presvot que, mesmo depois de morto como eu, ainda me curou de uma pelanca renitente que não largava do meu peito?”, perguntou descoroçoado.

“Não precisa incomodar doutor Chapot Presvot,” disse eu para animá-lo. “Eu acredito que tudo não passe de uma falsa impressão da sua parte, talvez porque o cheiro do churrasco tenha se encruado em sua memória olfativa devido ao tal mecanismo retropsíquico a que você se referiu. Afinal, a fumaça do churrasco saía medonhamente da boca e dos cós das novilhas, na praça do Quartel, numa visão asquerosa e inesquecível”, terminei por lembrar-lhe a cena bestial.

“O que você diz faz sentido, meu ínclito!” concordou ele, mostrando-se receptivo à explicação que recebera, depois de uma ligeira pensadinha. “Acho que vai ser uma questão de tempo desfazer-me dessa malsinada lembrança”.

“Ou malsinada lambança...” disse eu.

“Mas hei de conseguir”, afirmou, convicto.

“Então, voltamos a nos entender?”, perguntei aproveitando a deixa que se me oferecia.

“Voltamos, meu caro compatrício”.

Prevenindo-me discretamente contra qualquer tentativa de abraço que, sob a inspiração dos versos do padre Marcelino Ribeiro acompanhasse as suas palavras, disse-lhe francamente:

“Ainda bem que voltamos às boas porque não pretendo nunca mais me abalar pelas ruas do centro histórico de Vitória, numa disparada absurda, para saber o que se passa no seu espírito. Não tenho mais idade para isso”.

“Nem você tem para me perseguir, nem eu para fugir do seu encalço”, surpreendeu-me com sua resposta.

Dito o quê, foi-se desta vez pela escadaria Maria Ortiz, antiga ladeira do Pelourinho, numa ascensão mais lenta do que a da fuga anterior. Lá do alto, ainda se voltou e acenou com a mão esquelética, num gesto de paz e amizade que muito me comoveu.

“No fundo, no fundo é um bom e crédulo companheiro”, pensei com os meus grotões.

 

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