O Sr. Joelho vai à fisioterapia  

O Sr. Joelho chegou cedo para o primeiro dia de fisioterapia. Usava uma velha bermuda azul-marinho, uma camisa de malha desbotada, sapatos de couro sem cadarço e meias de cano longo que iam até a batata das pernas. Não se podia dizer que estivesse elegante, porque elegante ele não era, figurativamente falando, nem seus trajes favoreciam sua aparência, mas estava acessível, na indumentária que lhe fora recomendada, às entorses manuais pelas quais previra que teria de passar para ficar bom.

Habitava-o, é bom que se diga, um natural receio de calouro, nessa primeira sessão de tratamento. Para sermos exatos, dois receios o atormentavam: um, quanto aos tipos de exercício que o pudessem livrar de uma ameaça de intervenção cirúrgica na patela. Seriam dolorosos? Resolveriam o problema? O outro receio dizia respeito a quem o iria submeter à bateria de sessões que teria de enfrentar. Seria o fisioterapeuta com cara de Boris Karloff que ele vira na clínica quando foi marcar seu horário de atendimento? Ou algum brutamonte de cenho carrancudo que o torturaria com estiramentos de ossos dignos das polés do Santo Ofício?

Ledo engano.

Quem veio atendê-lo foi uma jovem e simpática fisioterapeuta que dele se aproximou em passos angelicais e perguntou: – O senhor é o paciente das 6,45?

Dobrado sobre si mesmo, mal acreditando no que via, o Sr. Joelho respondeu que era ele mesmo o paciente das 6,45.

– Então tenha a bondade de me acompanhar – disse a bem-vinda aparição que o havia chamado. – Entre nesta salinha e deite-se na maca de exercícios com a cabeça sobre o travesseiro. 

Obediente, o Sr. Joelho deixou os sapatos ao pé da escadinha de dois degraus que lhe foi indicada, subiu-a cauteloso e deitou-se apoiando a cabeça num travesseiro de espuma.

– Como hoje é o seu primeiro dia, os exercícios serão leves – disse a leveza em pessoa. – Está bem assim?

– Está – aquiesceu o Sr. Joelho.

– Então vamos lá. Primeiro vou ter que apalpá-lo para um exame geral. Se doer o senhor fala.

Deitadinho onde estava o Sr. joelho entregou-se prazerosamente às doces apalpadelas que percorreram todo o seu corpo enquanto pensamentos atrevidos lhe rondavam a cabeça e o travesseiro de espuma.

– Dói aqui? – perguntou a compenetrada investigadora.

– Não – respondeu o investigado.

– E aqui?

– Também não – repetiu o paciente desfrutando, em estado de graça, dos tépidos e amáveis toques da sua prestimosa atendente.

– E neste pontinho?

– Nesse pontinho dói um pouquinho – reclamou o apalpado rimando inho com inho.

– É a patela... – informou conscienciosamente a fisioterapeuta com seu cândido ar de irmã de caridade.

– Patela...? – repetiu o Sr. Joelho meio desligado.

– A rótula do joelho... – lembrou-lhe a fisioterapeuta. – E agora vamos fazer umas aplicações de ondas curtas. Fique tranquilo que não vai doer nada.    

O Sr. Joelho gostou do que ouviu, em especial daquele vamos fazer que instalava, logo na primeira sessão de fisioterapia, um clima de afável cumplicidade entre ele e a fisioterapeuta.

As aplicações consistiam numa suave massagem com um aparelhinho metálico que deslizava sobre uma camada de creme previamente espalhado pela dócil mão da fisioterapeuta por todas as latitudes e longitudes da rótula do Sr. Joelho.

 “Essas ondas devem ser magnéticas e salutares” pensou o Sr. Joelho com a sua patela, pois, leigo na matéria, queria atribuir também virtudes afrodisíacas à ação das invisíveis ondas curtas que lhe chegavam às cartilagens.

– Pronto – disse a meiga criatura que se doava com a máxima atenção e compostura ao seu novo paciente. – Vamos passar agora aos exercícios físicos.

Assim dizendo, ela ergueu até a altura do próprio ombro a perna em que o Sr. Joelho estava alojado, mantendo-a ereta e reta num apertado abraço de alguns segundos, antes de descê-la com cuidado à posição de repouso. 

– Estamos indo bem?  – indagava a cada gangorra que fazia.

– Prossiga, prossiga... – animava-a o Sr. Joelho deliciado com o misto de energia e ternura dos abraços de que se tornara o centro e o alvo.

Encerrada a série dos vaivéns pernilongos, o Sr. Joelho foi convidado a mudar de lado sobre a maca, para ser submetido a uma nova série de atividades físicas, às quais, diga-se a bem da verdade, ele se entregou com o maior devotamento, esforçando-se para não decepcionar sua dedicada atendente (tanto que não deixou escapar um pio de dor).   

– Agora, vamos para a sala ao lado.

Na sala ao lado, um aparelho de ultrassom foi colocado à inteira disposição do Sr. Joelho.

– Vou passar no senhor (a fisioterapeuta se dirigia ao Sr. Joelho) uma cinta térmica que vai lhe dar uma agradável sensação de aquecimento. Vão ser só vinte minutinhos...

– Não pode ser mais?– perguntou o paciente traindo os tais pensamentos atrevidos que na sala vizinha lhe rondaram a cabeça e o travesseiro de espuma. 

– Vinte minutos bastam – disse a fisioterapeuta antes de se retirar de mansinho com um delicado toque de mão na perna do Sr. Joelho.

Foram de fato vinte minutinhos, mas que delícia do primeiro ao vigésimo! No sossego da sala com música ambiente reduzida, ao abano de um ventilador de teto que girava em velocidade moderada e no aconchegante calor que se irradiava do aparelho de ultrassom, o Sr. Joelho mergulhou num sono relaxante. E em bem-aventurança sonhou.

Recuso-me, porém, à indiscrição de invadir a intimidade do nirvana onírico de um joelho belamente adormecido. Cingir-me-ei a descrever algumas de suas reações enquanto dorme para que as julguem e interpretem aqueles para quem um suspiro é letra.

Vamos a elas.

No princípio, tremem levemente as pálpebras adormecidas do adormecido. Em seguida, todo ele resplandece de uma luz sutil que parece brotar do sonho que começa. Delineia-se então em sua face um sorriso lânguido que vai se abrindo paulatinamente até dar passagem a um riso comprido e acabado. Neste ponto, porém, o riso cessa sob o efeito de uma crescente excitação respiratória que leva o Sr. Joelho a suspirar com ardor, à beira de uma satisfação intensa e voluptuosa.

– Vinte minutinhos se passaram (não sou eu quem o diz, mas a jovem fisioterapeuta que, acorrendo aos apitos intermitentes do aparelho de ultrassom, que marcava o tempo da aplicação, interrompe com algumas sacudidelas delicadas o bonançoso encantamento do encantado adormecido).

– Foi bem na hora! – disse ele abrindo os olhos ainda sonolentos.  

– Pode levantar – ordenou a jovem fisioterapeuta, libertando o paciente da cinta que o apertava.     

Encerrava-se ali a primeira sessão de fisioterapia a que se sujeitou (e não se diga que aborrecidamente) quem corria o risco de uma cirurgia na patela.

– Então até amanhã – disse o Sr. Joelho, despedindo-se. 

– Até amanhã – respondeu a fisioterapeuta. – E não vai perder a hora.

– Não a perderei, pode estar certa.

 Saindo da clínica, o Sr. Joelho chegou à conclusão de que precisava comprar com urgência uma bermuda nova, uma camisa de malha com estamparia colorida, um par de tênis última geração e meias esportivas para parecer mais moderninho e atraente na sessão do dia seguinte.   

 

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