Fragmento apócrifo

Do capítulo xiiij, livro onze, volume terceiro,
da crônica medieval A folha de hera (*) 

Então, quando a moça Alexandrine viu, à luz das tochas, que as cortinas da cama onde estava na companhia de sua senhora, Lady Katherine, foram rasgadas e arrancadas a golpes de fúria pelos cavaleiros e escudeiros que invadiram como cães raivosos a câmara do castelo onde as duas mulheres dormiam, arrojou-se ao chão num sobressalto (sursalto, no original), despojada do lençol que lhe encobria o corpo nu e esgueirou-se como enguia fugitiva rastrejando por entre as pernas dos algozes que ali entraram em bando com o mau propósito de levar à bela Katherine a violação e a morte com mãos ardidas de vingança e ódio. E tal ímpeto impôs Alexandrine em sua retirada subitânea, aproveitando da atenção toda que os invasores da câmara punham com seus maus instintos sobre Lady Katherine, que é de imaginar que só tivesse em pensamento resguardar a salvação da própria pele o mais depressa que a pudesse salvar, sem que na sua esbofada corredura parasse um momento sequer que fosse para cuidar na triste sorte da indefesa Katherine que assim se viu forçada e violada pelos que sobre ela se abateram e possuíram, antes que jouvesse talhada e matada sobre a cama a gume de punhal. A-ha, senhores, se num dia futuro de sua salvada vida Alexandrine vai se arrepender margosamente do abandono a que relegou Lady Katherine, não sei dizer, embora de pouca valia tivesse sido ficar em sua companhia. Mas precipitando-se para fora da câmara sem que nem um daqueles que ali se montuavam tivesse baixado o dedo para reter a enguia que resvalava no meio deles, passando onde não sabia que passava, correndo onde não sabia que corria, varando, na retaguarda de todos eles pelas duas pernas do menino de Jalensy, um moço que nunca tinha até então posto o olho numa fêmea nua, ainda que pela primeira vez ali a entrevisse pelas costas e rastejando escorregadia, tropeçou Alexandrine no corpo do velho e bom John Isore o qual, como contou a crônica em suas linhas passadas, tentou barrar a entrada dos invasores na câmara de Lady Katherine, no que foi tombado brutamente ao chão pelos que o atropelaram em sua fraqueza de ancião. Conta agora a história que não estando de todo morto o velho e valente escudeiro John Isore, retornou de si a si com o choque contra o seu corpo moribundo do corpo esbaforido de Alexandrine; e abrindo os olhos já conturbados pelas sombras da Morte, vendo a jovem pucela decaída quase dentro dos seus braços, imaginou que fosse Lady Katherine que conseguira debelar-se à sanha dos que a foram destroçar na câmara em que dormia. Aturdido dessa ilusão, é de se supor que o velho John se desse por feliz à beira do seu último suspiro porque o salvamento de Katherine fora tudo o que ele mais desejara quando se arvorou em sua solitária proteção. E ao perceber, no finamento da vida, que Alexandrine levantava e retomava sua bem sucedida retirada, John Isore ainda teve forças para exclamar, Ide-vos com a graça de Deus, ó bela Katherineta, para vos safar da má morte (no original malemort) que lhe quiseram impor seus cruentos inimigos. Nessa ilusão, morreu John Isore, salvando-se Alexandrine na sua desasperada fuga para a vida.

 

(*) Texto baseado na cena que narra o assassinato de Lady Katherine, no romance de autoria de Reinaldo Santos Neves.

 

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