A cadeira

De olhar ressabiado parei diante da cadeira artesanalmente feita de arame grosso – estranho exemplar de designer moderno.

Eu havia entrado no museu como quem entra numa caverna do futuro, para ver as obras de vanguarda que ali estavam expostas, consagradas internacionalmente como arte utilitária e funcional, segundo informava o catálogo que me fora entregue. 

Um silêncio sacrossanto dominava o interior refrigerado da caverna. Jatos estratégicos de luz jorravam do teto sobre os objetos expostos ao olhar dos visitantes em espaços espaçados entre si. A cadeira de arame era um deles.

Contemplei-a sub-repticiamente, dando-me ares de entendido em arte decorativa. 

Que era uma cadeira não havia dúvida: tinha pés, braços, encosto, assento (que parecia firme) e estava silenciosamente receptiva como receptivas são as cadeiras vazias para serem ocupadas pelos que nelas queiram se sentar. Mas intrigou-me uma questão germinal: onde começava e terminava a ponta do arame de que a cadeira era feita? 

Procurei e não achei o ponto inicial e o ponto do arremate do intrincado material que a formava. O começo e o fim do fio de Ariadne não se revelavam ao meu exame, não muito percuciente porque feito em condições precárias num museu. Talvez na indiferença com que a cadeira se exibia aos meus olhos residisse um pouco da arte com que fora confeccionada pelo artista que a criou. Um modo todo seu (da cadeira) de se mostrar à curiosidade do mundo, sem se deixar decifrar inteiramente.

Não seria eu, com a minha incapacidade de leigo e meu mal disfarçado olhar aparvalhado, que iria descobrir o secreto começo e o secreto fim do introspectivo objeto à minha frente. Menos ainda desvendar o seu oculto e intrigante significado artístico.                 

Passei então a outras perambulações mentais. Qual seria a sensação de usar aquele tipo de cadeira? Iria nela me sentir à vontade? Daria para ler um livro aboletado em seu seio de fio de arame recurvado? Poderia, em seu colo e em seus braços, tirar uma sesta domingueira sem acordar com dor nas costas e a nuca entorpecida? Ou conviria forrá-la com almofadas para me sentir confortável e bem acolhidinho no seu regaço feminil? Neste caso, não estaria eu cometendo uma heresia imperdoável ao revesti-la com um acolchoado que ofendesse sua dignidade artesanal? 

As perguntas brotavam revolutas, mas sem respostas, até porque não era permitido tocar nos objetos expostos no museu, quanto mais testá-los nas possíveis comodidades que pudessem oferecer a hipotéticos usuários, como eu. 

O caminho que me restou foi o da fantasia. 

Imaginei-me então sentando na cadeira.

No primeiro momento ela me recebeu friamente e eu senti a frigidez da armação de arame transpor a minha roupa e tocar a minha pele. Logo depois, começou a se mexer. Não em embalos suaves e cadenciados, como faria uma maternal cadeira de balanço que, aliás, não era o seu caso. Os movimentos que eu sentia na imaginação eram dos arames da armação da cadeira esticando-se e retorcendo-se sob meu corpo e em torno dele com uma elasticidade férrea para afinal me espremer em suas tramas como nas engrenagens de um aparelho de suplício.

Pensei então em pular fora daquele assento movediço. Mas se pulasse como poderia saber se valia a pena levar adiante o meu teste utilitário da cadeira artisticamente feita de arame?  Obriguei-me, pois, a ficar onde tinha me sentado para ver no que dava a sofrida experiência, ou pelo menos até onde eu a poderia suportar galhardamente ainda que a estivesse padecendo nas dobras da minha fantasia.    

Valeu a decisão porque a cadeira acomodou-se à sua condição de objeto cuja finalidade natural é a de receber na estrutura do seu corpo morto o corpo vivo que nela queira descansar.

É bem verdade que este esforço de adaptação, mesmo se passando no plano do imaginário, não foi apenas da cadeira, mas também de mim mesmo, ajustando-me aos arames em que me acomodara. Havia, é claro, certa resistência num ou noutro ponto das ferragens, percebido pelos meus glúteos e costados. Mas nada que não fosse momentâneo na medida em que – acreditava eu - o meu peso prevalecesse sobre a pressão em sentido contrário do arame de que a cadeira era forjada. A questão era saber quanto tempo levaria a acomodação recíproca entre o homem e o assento que lhe servia de amparo. 

Como eu navegava no plano das extravagâncias mentais contava que a cadeira acabaria domada pelo meu corpo, desde que me forçasse a dominá-la.

Mas seria realmente esse o comportamento da cadeira postada à minha frente, criada com intenções estéticas e abstratas para ser, ao mesmo tempo, um móvel e uma decoração art noveau

Se assim era, devia eu de aceitar que a cadeira estivesse muito além da minha capacidade de entendê-la e subjugá-la. O seu lugar, portanto, era onde a encontrei - na oca refrigerada do museu.

Tendo chegado a esta brilhante conclusão baixei à realidade e retomei minha caminhada pela exposição, sem poder supor que no espaço seguinte me esperava um almofadão esverdeado, em forma de polvo gigantesco com tentáculos esparramados pelo chão.

Só que ao vê-lo dei de ombros. Já estava convencido de que eu não pescava absolutamente nada do fino espírito da arte do mobiliário funcional-decorativo.

 

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