Eu, que o pensava morto, avistei-o no restaurante, num domingo de inverno. Ele usava óculos escuros e estava completamente calvo. Assim que me viu, acenou para que fosse me sentar à sua mesa. Não tive escapatória e, para não ser indelicado, apesar da pouca intimidade que entre nós havia, acatei o chamado.
A mesa era a mais recuada de todas, num canto do restaurante, como se estivesse dentro de um armário embutido.
Cheguei lá junto com a moqueca capixaba que aterrissava à sua frente, fumegando na panela de barro a ponto de embaçar os óculos que cobriam seus olhos.
Ele levantou-se, pôs sobre meu ombro sua mão sumida na comprida manga do pulôver e literalmente me obrigou a sentar na cadeira, que arrastou com a ponta do pé. Se eu quisesse dar uma desculpa, recusando o convite, era tarde. Pressionou minha clavícula para que eu não ensaiasse relutâncias e deslizou para o meu lado, sobre a toalha coberta com um plástico transparente, o prato que lhe estava destinado:
- Sirva-se!
Não me perguntou se eu queria a moqueca ou se seria outro o meu pedido. Foi firme e convincente.
- Sirva-se. Sei que você gosta de moqueca de badejo. Ou estou enganado?
Não estava, mas eu tive que lhe lembrar que a moqueca era apenas para ele, que ali estava sozinho.
- Não se preocupe. Eu não ia comê-la mesmo.
- Se você não ia comer, por que a pediu? – indaguei intrigado.
- Para admirá-la e sentir o seu perfume. Veja o deslumbre que é, resfolegando na panela de barro, saída do fogo palpitante e pictórica. Se eu tivesse uma máquina fotográfica tirava até uma foto.
- Por isso não seja – disse eu. – Use o meu celular.
- Prefiro que você tire. Não sei mexer nesses aparelhos moderninhos, de funções multiplicadas.
Então tirei a foto e mostrei-lhe.
- Está ótima. Tire outra, de um novo ângulo.
Tirei pegando desta vez a trindade clássica da moqueca capixaba: a panela de barro com o peixe refestelado no caldo de urucum, o pirão de farinha fervente e o prato de arroz branquinho e solto.
Ele aprovou a foto depois de examiná-la no visor do celular que aproximou ao máximo dos seus óculos escuros.
- Agora é toda sua – disse referindo-se à moqueca com um aceno de cabeça.
- Só aceito se souber por que ela é para você apenas um prato decorativo.
- É uma história antiga... – disse com ar distante.
- Me conte assim mesmo. Você me deixou confuso – comentei enquanto ajustava no pescoço o guardanapo vermelhão que retirei da mesa, explicando:
- Para proteger minha camisa. Sempre me lambuzo de urucum quando como uma moqueca. Mas vamos lá: por que você não vai comê-la? Alguma proibição médica?
- Nada de proibição. Somente uma impossibilidade física: eu não tenho mais estômago! Virei um sujeito de boca trancada para comidas... – disse ele esboçando um sorriso mortiço nos lábios mal entreabertos.
- Você está brincando...
- Falo sério. A moqueca é um exemplo, um sofrido exemplo da minha atual impossibilidade. Vejo-a fervilhando na panela, cheiro-a, admiro-a, sou capaz de compor uma elegia em sua honra, mas não vou além desse frustrante enlevo gastronômico. Ao vê-la, cheirá-la e vislumbrar a sua fumacinha subindo para o alto, eu mato a saudade que tenho dela.
- Mas você não poderia comê-la mastigando devagar?
- Não, porque também não tenho dentes... – E abriu a boca para que eu constatasse a veracidade de suas palavras, a dura veracidade delas, impondo-me o desconforto de descortinar sua banguelice escancarada e rósea.
- Pelo menos não daria para você provar um pouco do pirão? Deve cair fácil no intestino – sugeri querendo partilhar com ele uma parte mínima do almoço.
- Infelizmente não dá porque também não tenho intestinos. Tornei-me um destripado! – e riu novamente, já sem o pudor de camuflar as gengivas desdentadas.
A nossa conversa tinha enveredado por um caminho que me tirara o apetite. No prato, sob meus olhos, esfriavam a posta de robalo, o arroz e o pirão de farinha, intocados. Um sentimento de pena pelo estado a que chegara meu companheiro de mesa me impedia de almoçar na sua companhia. Seria abusar de sua gentileza e humilhá-lo sem a menor consideração.
Por outro lado, não pude conter minha curiosidade:
- Se você não tem dentes, nem estômago, nem intestinos, como sobrevive sem comer?
Ele me encarou com os óculos que não deixavam ver seus olhos, se é que os tinha, e respondeu:
- Mas há cinco anos que eu estou morto, meu amigo! Hoje é meu aniversario de falecimento!