No momento azado quero ser o homem azado no lugar azado. Para isso estou me preparando, embora não saiba ainda exatamente para o quê, mas confiante em que, quando o momento chegar, eu saberei o que fazer e, principalmente, o que dizer para todos aqueles que lá no lugar azado não estiverem para me ouvir.
Pouco me importa a possibilidade dessa ausência de ouvintes. Não será a certeza de uma lacuna como essa que me tirará o ânimo e cerceará o impulso de me fazer presente no lugar azado como o homem azado que ali deva estar para ser ouvido com sua palavra azada, por uma multidão inexistente. Eu estarei lá, é o que me basta, e para tanto estou me preparando, já o disse.
Não tem sido uma preparação fácil a que estou fazendo, apesar da minha pertinácia.
Mas quando estiver pronto e acabado para o momento azado, lá comparecerei com boa disposição de espírito. Se não houver multidão de gente para me ouvir, falarei à multidão de peixes como um Santo Antonio redivivo. Se não houver peixes, falarei a Santo Antonio de quem sou devoto e não me falhará ao encontro, assim espero. Mas se também, por alguma razão superior, lá não comparecer o santo da minha devoção, aos pássaros falarei e, se não a eles, às pedras. E se pedras não houver, eu falarei ao vento, que não me há de faltar para levar em suas aladas asas as minhas azadas palavras para a audiência de uma multidão ausente, onde ela esteja reunida, já que confio na competência do vento para transportá-las até onde as palavras azadas devem ser ouvidas, depois de proferidas no momento azado pelo homem azado.
Porque em verdade vos digo que não quero decepcionar aos que não estarão presentes para me ouvir.
Umas poucas dúvidas eu ainda tenho.
Uma delas: falarei as minhas azadas palavras no momento azado e no lugar azado apenas com a força dos meus fracos pulmões, pondo em concha as mãos na boca ou usarei um megafone para ser ouvido pela abstrata multidão, no lugar em que serei o azado homem que a ela vai falar?
Outra questão que me invoca é saber se falarei de cima do meio fio, cercado pela multidão ausente, ou se será sobre uma cadeira como fez frei Henrique de Coimbra ao pregar na Segunda Missa celebrada em terra firme (quem não sabia do fato, fique sabendo).
A ideia de falar de uma cadeira me anima se não fosse pela imitação do eloquente capelão, pelo menos pela facilidade que sempre existe (não existiu para frei Henrique?) de que me seja trazida uma cadeira por um espectador ausente para que nela eu suba e dela abra o verbo, o meu azado verbo a ser sacerdotalmente propalado. E havendo por perto (com o que eu nem sonho) quem seja testemunha das palavras que de mim vai ouvir, poderá escrever que eu as disse em alto e bom tom como escreveu Caminha do capelão da Armada, para que me torne famoso para todo o sempre como o homem azado, das palavras azadas, no momento azado.
Digo até que, se para a minha glória e honra pessoal, a informação ouvida e registrada chegar ao conhecimento de um rei inexistente, há de sua majestade ficar sabendo da loquacidade azada de um súdito seu que perdeu o tino por conta de um jogo de palavras, num momento azarado de absoluta falta de palavras azadíssimas para dar forma e voz a uma crônica.