O choro do fantasma

Por que choras tanto assim, perguntei ao fantasma do centro histórico de Vitória, quando o deparei convulsionado em lágrimas, sentado no meio-fio perto da estátua de Domingos Martins, na cidade alta.

Ele tirou a cara de dentro do chapéu de palhinha em cujo âmago procurava esconder a vergonha do seu pranto estremecido e limitou-se a apontar com o dedo encardido o prédio à sua esquerda, que não era outro senão o Palácio Domingos Martins.

Contendo o choro disse:

- Vê, meu digno, o estado deplorável em que o ex-palácio se encontra! E pensar que nesse prédio histórico, erguido nesta praça histórica, funcionou a Assembleia Legislativa Estadual que antes se chamava Congresso Estadual. Não é do seu tempo, eu sei, mas a Assembleia Legislativa é. É e não é, porque não é mais. E o que sobrou dela? O mastodonte em estado crítico que aí está. Eu disse aí está, mas vou me corrigir:que ai jaz, porque ele estámais morto do que eu.

- É lastimável – concordei com ele. 

- O quê?

- É lastimável – tive que repetir.

- Lastimável não é tudo, meu digno!  É um desleixo completo para com o nosso patrimônio histórico – protestou o fantasma. - Você se lembra do prédio que antes existia aí?  Não, você não se lembra! Mas como historiador deve saber que antes do Palácio Domingos Martins, que hoje cai aos pedaços, o que havia era a igreja de Nossa Senhora da Misericórdia! Quanta missa eu assisti celebrada pelo padre Antunes de Sequeira! Eu subia célere a ladeira da Misericórdia, que graças a Deus mantém este nome...

- Hoje é escadaria ...

- O quê?

- Hoje é escadaria. Mas mantém o nome.

- No meu tempo era uma ladeira íngreme, que eu nem sentia, escalando-a para ouvir os sermões do padre. Um grande orador sacro! Um Vieira espírito-santense, meu digno... Agora o que me resta dizer - dizer não, verberar aos quatro ventos - é MISERICÓRDIA! Sim, MISERICÓRDIA para com o palácio Domingos Martins!  

- Sua revolta é muito justa – concordei com ele. 

- O quê? Fale mais alto porque acho que estou ficando surdo. Deve ter entrado terra no meu ouvido...

- Sua revolta é muito justa!

- Claro que é... – disse o fantasma tirando do bolso interno do paletó uma foto amarfanhada que pôs sob meus olhos. 

- Veja. É uma fotografia do tempo do presidente Jerônimo Monteiro. A igreja da Misericórdia é esta aqui. E seu dedo cadavérico pousou com a unha tumular sobre a igreja pintada a cal. 

- Era um dia de festa? – perguntei em voz alta, vendo, no canto esquerdo da foto a fileira dos soldados perfilados diante do coretinho das autoridades.

- Se não me claudica a memória era uma comemoração política. Nessa praça se realizavam as grandes efemérides da cidade. Efemérides que naquele tempo se escrevia com ph. Olha: eu sou este que está aqui – e me apontou o cidadão de terno branco, mãos nas costas e chapéu de palhinha, ao lado do canteiro, no primeiro plano da foto desbotada. - Eu e você estamos no mesmo lugar onde eu apareço no retrato, há mais de cem anos. Nem havia o busto do herói Domingos Martins.

- É muita coincidência – falei.

Ele não ouviu e continuou: - O chapéu de palhinha é o mesmo que continuo usando. Veja como está conservado – e me passou o chapéu em que há pouco vertia suas lágrimas, que estava úmido e sebento.

- Mas olhe aqui de novo. Sabe quem é a pessoa que foi retratada ao meu lado, de indumentária escura e também de chapéu igual ao meu? – interrogou-me como se fosse alguém que eu tivesse a obrigação de conhecer. – É o comendador... (e disse o nome.) – Meu dileto amigo, o comendador. Gratíssima persona. Nós éramos unha e carne (e para ilustrar a imagem o fantasma roçou um no outro os dedos indicadores descarnados).  

- Eu já vi uma cópia desta fotografia em algum arquivo – comentei, quase acrescentando: só que em muito melhor estado. - Mas nunca me passou pela cabeça que você estivesse nela.

- Estou. Aliás, eu e o comendador nunca perdemos uma solenidade nessa praça que já se chamou largo Afonso Brás. Nem perdíamos as posses dos governantes do Estado, no Congresso Estadual. Basta dizer que eu sei de cor o discurso de Florentino Avidos, quando assumiu o governo. Quer ouvi-lo? Que admirável presidente! Por isso me dói ver a degradação de um prédio com um passado tão lustroso de história.  

Para que o fantasma não desabasse em nova choradeira, procurei confortá-lo:

- Eu acredito, meu velho, que as nossas autoridades acabarão restaurando este monumento, como aconteceu com o Palácio Anchieta, ali do outro lado. Observe como ficou palacianamente esplendoroso.

O fantasma me dirigiu um olhar de azedume cadavérico e respondeu:

- Esse contraste gritante é que apoquenta a minha alma. Num lado da praça, um palácio majestoso; noutro, um que se arruína às escâncaras, com ares que posso chamar fantasmagóricos. O oito e o oitenta vis a vis. Uma discriminação injustificável! Você consegue explicar esta diferença de tratamento, meu digno?  

Talvez eu pudesse explicá-la. Mas não sei se o fantasma entenderia o que ia lhe dizer. Então me calei.

- Se você não tem nada para me dizer, vou-me embora desiludido da vida e da morte – disse ele, rompendo o silêncio que permeou entre nós.

E sem mais palavras ergueu-se do meio-fio, perto da estátua do protomártir, enfiou o chapéu de palhinha na cabeça e se desmaterializou na minha frente.

Crônica baseada em foto da praça João Clímaco, de 1908.

 

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