Passarinhas

Gosto da palavra passarinho.

Sobretudo quando dita pausadamente, como quem degusta um sorvete de casquinha, parece-me perfeita para significar o que significa. Acho impossível enunciá-la sem a associar de plano à avezinha que identifica. Dá para imaginar o objeto significado em voo solto, ou saltitando pelo chão. Quando se trata da forma feminina sua expressividade vocabular redobra de motivações: passarinha!

No plural então a palavra é para mim cheia de sentidos. Repitam-na comigo devagar e vejam se tenho razão: pas-sa-ri-nhas!

Deu para notar?

Se a alongarmos numa decodificação vocalizada, multiplicando seus ss para dar leveza e graça à expressão, granjeia-se um prazer cicioso imprevisível: pas-ssa-ssa-ri-nhas! 

Deu para sentir?

Pois elas eram duas e vinham pela alameda dos manacás floridos. Vinham também tangidas pelo áspero canto das cigarras, quando a tarde submerge nas beiradas da noite. Desembocavam na praça ampla, pouco movimentada àquela hora.

Chegavam palradoras e alegres em sua jovialidade de meninas de 13, 14 anos. Uma delas, a dos cabelos longos, conduzia um cachorrinho pela correntinha, talvez o pretexto para estarem ali, as duas e os três, no passeio vespertino das vésperas de todos os dias, à hora em que a noite vem render o dia. Seria este o desejo delas – que caísse a noite?

Não se sentavam logo. Rodavam pela praça, conversando e rindo, rindo e conversando, sem alvoroço, sem alarde, entregues a si mesmas no seu passeio descontraído, como se o mundo não existisse a sua volta, nem mesmo o cachorrinho preso à mão de uma delas, comportado e paciente – o pretexto que tudo via e tudo ouvia, embora nada entendendo do que era falado nem do que se passava sobre seus olhos e orelhas.

Elas não escolhiam um banco especial para se sentar. Andando a esmo, sentavam-se a esmo. Nele se punham à vontade, inteiramente à vontade, porque não havia razão para esconder a verdade do que eram e do que mostravam ser – duas jovens passarinhas pousadas na mansidão da praça aberta e rasa. E assim ficavam envolvidas em sua conversa entrecortada por risinhos curtos e furtivos chameguinhos.

A dos cabelos curtos – agora a evidencio por um detalhe do seu corpo – passava o braço pelas costas da de cabelos longos, mas sem apoiá-lo no ombro da outra, apenas acomodando-o sobre o encosto do banco de madeira com pés de ferro fixados no chão. Não havia nesse gesto de apego, em que a conversa que mantinham parecia não ter fim, nenhuma intimidade entre elas, descontados os beijinhos leves que a dos cabelos curtos dava na dos cabelos longos ao puxá-la para si e instantaneamente lhe tocar os lábios ou a face em levíssimos instantâneos (mas era preciso estar atento para percebê-los).

Quem achasse ter visto mais do que isso – algum atrevimento íntimo entre as duas – teria pensado ou visto errado. Elas não estavam em público para escandalizar o público, não se sentavam no banco dos pés de ferro para afrontar a férrea moralidade dos bons costumes, menos ainda para provocar comentários adversos, seja em prosa, seja em verso.

Estavam ali porque simplesmente estavam onde achavam que podiam estar, enquanto a tarde se dissolvia nas sombras da noite, os manacás respiravam o seu perfume na alameda próxima e as cigarras vibravam suas castanholas metalúrgicas.  

Lá pelas tantas, as passarinhas se erguiam do banco num impulso cônjuge. Com passadas reticentes de quem tinha de ir embora porque chegara a hora da partida, iam-se de mãos dadas, sempre falantes e risonhas, com o cachorrinho junto. De volta à alameda dos manacás floridos, a dos cabelos curtos às vezes soltava a mão para abraçar pelo ombro, com sua asa protetora, a dos cabelos longos, que se acolhia e encolhia no aconchego da amiga.

Seguiam as duas sem olhar para trás, sem olhar para os lados, sem se vigiarem, completas e absolutas em sua convivência de jovens namoradas.

Um dia, pois certamente chegará esse dia, as duas passarinhas – nem falo do cachorro que é só um pretexto – irão se lembrar desses momentos em que criaram perplexidade a sua volta. Não pela perplexidade que criaram e para a qual não davam a mínima, mas pelo que a si mesmas se deram na perplexidade da experiência nova que de parte a parte iniciaram.

E provavelmente sentirão saudades do canto bárbaro das cigarras e do perfume adocicado dos manacás floridos. Mas o que sei eu da vida para uma afirmação tão categórica.

Oh, passarinhas! Quanto envolvimento nessa palavra tão rica de cicios. 

 

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