Machado de Assis, a escravidão e quejandos

Censores ideológicos entrincheirados no Ministério da Educação tacharam de racista o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato.

Com os olhos turvos do preconceito, a turma do patrulhamento viu no tratamento que, em algumas passagens, o grande Lobato deu à queridíssima personagem negra Tia Nastácia – queridíssima de crianças e ex-crianças que a têm como uma verdadeira tia-madrinha –, uma demonstração de discriminação de branco contra negro. E sapecaram no livro a tarja condenatória do proibido para leitura nas escolas públicas do país, já que não podem atirá-lo às chamas das fogueiras inquisitoriais, como talvez o desejassem.

O repúdio à indexação inaceitável foi imediato, da parte da inteligência brasileira.

Mas agora me pergunto eu, e os outros?

Sim, e os outros muitos livros em que a figura do negro é contemplada em páginas literárias, conseguiram ou conseguirão se safar à sanha indiscriminada dos olhos enviesados dos censores?  Qual o destino, por exemplo, dos romances de Machado de Assis em que o convívio entre negros e brancos é retratado de forma contundente?

No mínimo, Machadão pode ir parar no pelourinho dos açoites exacerbados. Quem duvide basta ler os trechos que se seguem, extraídos de dois dos maiores romances machadianos.

Está no capítulo XLVII, do Quincas Borba, a narrativa do enforcamento de um escravo. Rubião, personagem do romance, havia tomado um tílburi para ir para casa. No percurso, o veículo é detido por um ajuntamento de pessoas, formado de um juiz, um padre, soldados e os curiosos de sempre. (A elite dominante e os brancos da época?)

Abram-se aspas para as palavras de Machado: “Mas, as principais figuras eram dois pretos. Um deles, mediano, magro, tinha as mãos atadas, os olhos baixos, a cor fula, e levava uma corda enlaçada no pescoço; as pontas do baraço iam nas mãos de outro preto. Este outro olhava para a frente e tinha a cor fixa e retinta. Sustentava com galhardia a curiosidade pública”.

O enforcamento se fez no largo da execução, e estou encurtando a descrição do romancista. “O instante fatal foi realmente um instante; o réu esperneou, contraiu-se, o algoz cavalgou-o de um modo airoso e destro; passou pela multidão um rumor grande, Rubião deu um grito e não viu mais nada”. 

Está também no romance Memórias póstumas de Brás Cubas, capítulo LXVIII, O vergalho, outranarrativa sobre escravos. O título do capítulo é propício ao episódio que, por sinal, é de causar arrepios: um preto açoitava outro em praça pública. “O outro não se atrevia a fugir” escreve Machado. E prossegue: “gemia somente estas únicas palavras: - ‘Não, perdão meu senhor; meu senhor, perdão!’ Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova: - ‘Toma, diabo! Dizia ele; toma mais perdão, bêbado!”

Machado torna sua narrativa mais ferina – e pensar que ele era mulato! - quando descreve que o preto que dava as vergalhadas era nada menos que “o moleque Prudêncio”, que tinha sido libertado alguns anos antes pelo pai de Brás Cubas, o narrador do episódio.

A ação continua, e encurto novamente a descrição do romancista: “Cheguei-me (ao algoz); ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.

- É, sim, nhonhô.

- Fez-te alguma coisa?

- É um vadio e um bêbado, muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.

- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.

- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para a casa, bêbado!”

Tanto o romance Quincas Borba, quanto o Memórias póstumas de Brás Cubas passam-se num Rio de Janeiro escravocrata, do século XIX. Em seus romances urbanos, Machado de Assis se faz cronista de época, e recupera, em passagens magistrais embora cruéis os costumes sociais do Rio imperial. São reconstituições ficcionais que transcendem o campo da literatura para se fazerem registros históricos, de cunho social. Elas se prestam ao conhecimento, à análise e à crítica do nosso passado tupiniquim, mas é preciso saber vê-las por esse viés.

Seria, porém, este o entendimento dos censores do MEC?  Ou o Quincas Borba e as Memórias póstumas de Brás Cubas estão também passíveis de serem condenados à tarja negra da restrição preconceituosa para leitura nas escolas públicas?

Não se ficando apenas nas letras brasileiras, recue-se ao primeiro romance picaresco da literatura universal, publicado em 1554, na Espanha: A vida de Lazarilho de Tormes e de suas fortunas e adversidades.

Escrito na primeira pessoa por autor desconhecido, o livro tem uma passagem que deixa as de Machado de Assis no chinelo, aos olhos do preconceito racial: a mãe branca de Lazarillo, depois da morte do marido, passou a viver com um negro, com quem teve um filho também negro, o que deu motivo à seguinte passagem da obra:

“Lembro-me de que, estando o negro de meu padrasto brincando com o garoto, como este viu que minha mãe e eu éramos brancos e ele não, fugiu dele com medo e, apontando com o dedo, disse:

– Mãe, é o bicho-papão!

Ao que ele respondeu, rindo:

– Filho da puta!” 

Antes que me vergastem, remeto à fonte que consultei: A vida de Lazarilho de Tormes e de suas fortunas e adversidades. Anônimo do século XVI. Porto Alegre, L&PM, 2005, Tradução de Roberto Gomes, p.19.

Mas este é o tipo de livro que, se depender do MEC, talvez dificilmente frequentará os bancos das escolas públicas brasileiras. E ainda estou concedendo (ingenuamente?) o benefício da dúvida.

 

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