O fantasma do centro histórico de Vitória

Sempre que o vejo na rua eu o evito – o fantasma do centro histórico da cidade. Ou finjo que não o vejo. Ou mudo de caminho. Ou volto sobre os calcanhares. Mas às vezes, para minha tristeza, esbarro nele (ou ele esbarra em mim?) numa trombada súbita, como se brotasse do chão, num passe fantasmagórico.

Neste caso não tem jeito. Caio-lhe nas garras ou, melhor dizendo, caio-lhe na conversa anacrônica com que me agarra e não me larga mais, torrando a minha paciência.

– Há quanto tempo não o encontro, meu digno! – é como ele abre as abordagens ajeitando com as mãos magras e lívidas a gravata borboleta no colarinho duro, num cacoete de começo do século passado. – Não o tenho visto no Liceu Philomático. Deixou de dar aulas lá?

Não sei quem botou na cabeça do fantasma que eu lecionei no Liceu Philomático, que nem sei onde ficava, em Vitória. Mas não adianta querer desdizê-lo. O que se passa na cabeça dele, debaixo dos seus cabelos emplastrados de brilhantina, está além da minha limitada inteligência. Fazem parte das suas convicções transcendentais que é de boa sensatez manter intactas, porque são absolutamente fantasmais.

Sei que a estratégia é equivocada, responsável, talvez, pela preferência que me devota o fantasma quando me pega como “cristo”, dentre milhares de viventes que transitam pelo centro da cidade. Paciência, meu digno, digo para mim mesmo.

– Estou vindo da rua do Piolho e me sinto supremamente frustrado –  disse meu interceptador.  –  Fui lá comprar umas cocadinhas na quitanda de seu Leovigildo, mas não achei a quitanda, nem o dono, nem as guloseimas de coco que caem no meu goto saborosamente. Você me dá notícia deles?

O fantasma disse isso pousando sobre meus ombros o seu braço longo e envolvente, metido na manga de um paletó funéreo, o que não impedia que eu sentisse um frio sepulcral umedecendo a minha nuca. Como, porém, explicar em pleno movimento citadino, com gente passando de um lado, e carros do outro, que o meu amigo estava fora do seu tempo e do seu habitat? Como lhe explicar – sobretudo em poucas palavras para me ver logo livre da sua incômoda presença – que a rua do Piolho havia se transformado na 13 de Maio, e que a quitanda do Leovigildo, que eu nunca conheci, tinha ido para o beleléu há muito tempo?

Se ele não era capaz de perceber esta realidade com os olhos que a terra deixou de comer, eu me recusava terminantemente a aceitar a melindrosa missão de esclarecê-lo.

Preferi desconversar.

– Por que você não vai comprar cocadas num supermercado? – perguntei, indicando-lhe um que não era longe de onde nós estávamos.

O fantasma me olhou friamente com seus olhos baços, mas ainda preservados, e falou com brusquidão: – Esta não é uma proposta digna de ser feita a uma pessoa (ele se considerava como tal) do meu jaez, meu digno. Até parece que você não me conhece! Jamais pisarei num armazém moderno como o que você mencionou. Eu sou do tempo em que se compravam cocadinhas em quitandas e em tabuleiros de doceiras; em que verdureiros levavam, em cestos de fibras, frutas e verduras para serem vendidas nas casas da cidade; em que os fogões dos lares funcionavam à base de achas de lenha; em que as pedras de gelo eram cobertas com serralho para durarem nas geladeiras de madeira; em que...

O discurso do Fantasma se estendeu neste diapasão rememorativo, entoado ao pé do meu ouvido com um hálito tumular, sob o peso de sua asa negra nos meus ombros, sem oferecer a menor brecha para interrompê-lo.

Tudo isso se passava perto de um semáforo, eu e o fantasma parados na calçada, num cruzamento de uma rua com uma avenida de trânsito turbulento. Mas o intenso cenário ao nosso redor lhe era indiferente, como se ele não o visse. Seus olhos voltavam-se apenas para o passado e percebi que somente o passado podia servir para a minha salvação.

Foi por onde resolvi enveredar a poder de uma estocada de dedo endurecido nas costelas magras do fantasma, para lhe cortar o desenfreado palavrório. Ele parou de falar e olhou na direção em que eu já apontava com a arma que o calara.

– O que foi? – perguntou.

– A velha Maria Saraiva, com seu tabuleiro de doces, acabou de entrar na rua da Várzea – disse-lhe eu.

– Maria Saraiva?

–  Ela não é da sua época?

– Não, mas sei que foi doceira famosa. Meu avô foi seu freguês pelo que me contava meu pai. Vou sair no seu encalço agora mesmo, meu digno.

E foi-se, deixando-me aliviado da sua companhia, mas com o sentimento de culpa de ter visto um vaga-lume iluminar seus olhos baços quando ele partiu flutuando no ar, em direção à rua 7 de Setembro.  

 

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