Por dentro de uma mente fantasiosa

Interessado ando, interessado paro.

Aqui olho a exposição “por dentro da mente de Leonardo da Vinci”; ali contemplo a exposição da parede da velha igreja de Santiago, hoje palácio Anchieta. Aqui imperam os vários protótipos de madeira que materializam os desenhos dos inventos do gênio; ali dominam as pedras empregadas na construção do templo jesuítico, superpostas umas às outras, pesadas e duras; aqui as peças de madeira se espalham pelo salão refrigerado de uma das alas restauradas do palácio; ali os pedregulhos de muitos tamanhos, feitios e pesos se concentram jungidos entre si formando o que foi uma das paredes da igreja que serve de limite ao recinto onde a exposição de da Vinci tem lugar.

Neste lado de cá, estou a percorrer e examinar, mostra por mostra, entre paradinhas ligeiras, máquinas de guerra, equipamentos hidráulicos, criações voadoras, aparelhos para uso diverso que a mente vária e ardente do inventor previu muito antes do tempo em que pudessem ser fabricados; naquele lado de lá, diante da grande parede de pedras que se expõe nua e crua, descascada de reboco para que todos possam ver e admirar o engenho e a arte com que foi construída, eu também me detenho para um olhar mais investigativo e atento. 

Estou de costas para Leonardo da Vinci e seus extraordinários inventos sem contudo deixar de estar colado à mente prodigiosa do inventor e artista.

No fundo, mas não na forma, as duas exposições se tocam e completam: a do italiano e a da grossa parede da igreja a me lembrarem ambas uma época de técnicas e artes em que se revelou, idealizadora e funcional, a engenhosidade do europeu dos séculos XV e XVI. 

Este paredão de muitos metros quadrados de história que aí está e que agora me enquadra e fascina não foi, porém, construído nos primórdios da igreja a que deu sustentação e formato. As paredes erguidas com rochas foi obra de um avanço paulatino enquanto a igreja crescia em tamanho e se corporificava nas mutações que sofreu. 

Isso porque a casa de Santiago, fundada na vila de Vitória pelo padre Afonso Brás, nada mais era, em suas origens, do que um frágil quitungo que data dos sumidos de 1551 quando o jesuíta o ergueu com o auxílio prestativo do irmão Simão Gonçalves.

Carpinteiro de ofício, como era Afonso Brás, imagino vê-lo projetado na parede de pedra como numa tela de luz determinado a iniciar a edificação do tosco casebre de palha e esteios. E imagino que seja eu o irmão ao seu lado, e não o noviço Simão Gonçalves.

“Irmão Luiz, aqui faremos a nossa casa, que será a casa de Santiago e de Deus, a primeira que os jesuítas hão de construir nesta bem-aventurada vila de Nossa Senhora da Vitória” – ouço-o dizer e dizer-me num castelhano carregado que, por triste falência minha, não sei verter para o português como devia.

E dito o que foi dito, deita-me ordem com a segurança de que será ela literalmente cumprida, por mim e por ele próprio:

“Aviai, irmão, e vamos aos matos deste alto de morro tirar as palhas e os paus necessários à obra. E trazei-me por amor a Inácio de Loiola, que um dia será santo, a minha caixa de ferros para o trabalho das madeiras que havemos de descer para o serviço da Companhia e soberbia do orago.”

Assim determinados, fui e fomos, do que dou parecer e ciência por conta da minha fantasia literária, tirar bem tirada a madeira aos matos da nobre colina que veio a ser o fulcro histórico da cidade de Vitória, desincumbindo-nos venturosos da missão que fervorosamente nos traçamos, o padre carpinteiro e eu, seu improvisado carapina e ajudante. 

E se hoje o cronista que vos escreve em linhas de devaneio não vê mais na parede da igreja, junto à exposição de da Vinci, a madeira que outrora foi usada para sua edificação primitiva, é porque a ermida de antanho mudou de figura e ganhou importância graças à robustez das pedras que lhe deram continuidade e vigor.

Pedras que - Santo Inácio de Loiola seja louvado! – não teve o irmão Luiz de carregar nas costas.

 

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