Um veranista pioneiro?

Houve no Espírito Santo, no começo do século XIX, um certo coronel Falcão para quem se deveria bater continência post-mortem. Dono de terras em Araçatiba, dentre elas a fazenda que pertenceu aos jesuítas, o coronel se dava ao luxo de descer de seus rincões agrários para tomar banho de mar na Barra do Jucu.

Um pioneiro digno de respeito? A mim me parece que sim, porque não sei de nenhuma outra criatura que, antes do coronel, se desse ao salutar hábito dos banhos de mar no Espírito Santo.

A Barra era naquele tempo uma aldeia de pobres habitações de estuque, cobertas de palha, habitadas por pescadores. A casa do coronel ficava próxima da ponte sobre o rio Jucu. Devia ser a mais confortável do lugar porque foi requisitada pelo governador Rubim para alojar o príncipe alemão Maximiliano, quando este esteve no Espírito Santo, em 1815. O coronel ficou contrariado com a perda temporária do seu ninho de veraneio, escreveu Maximiliano (embora o “ninho” seja por minha conta). Mas ordem de Rubim não admitia discussão.

Nem por isso, o coronel deixou de curtir o verão daquele ano, tendo se aboletado em outra casa na Barra, como também registrou Maximiliano.

Estamos, pois, diante de um arraigado tomador de banhos de mar no Espírito Santo.

Por que, e de que forma os tomava, não sabemos.

Vestia-se com roupa própria ou a improvisava para os seus mergulhos – ou nem sequer a vestia, numa afronta nua e crua aos severos costumes da época? Buscava o mar por puro deleite pessoal ou para o tratamento de algum distúrbio crônico que lhe afetasse a saúde? Sejamos mais extremados ainda: haveria, nos veraneios a que religiosamente se entregava o coronel, um propósito de purificação espiritual proporcionado pelos banhos de lavagem com a água salgada, dos quais não abdicava de forma nenhuma? São perguntas sem respostas.

Sabe-se que os banhos de mar, também relacionados com a mudança de ares, tornaram-se moda na Europa a partir do final século XIX, como recomendação para tratamento de algumas enfermidades respiratórias. Havia todo um ritual a ser cumprido por quem ia à praia, com a observância rígida de regras de conduta médica, controle de tempo de exposição ao sol e ao vento, contactos comedidos com a água fria. A praia e o mar entravam nos receituários médicos com restrições e dosagens de experimentação empírica. Era um tratamento quase que homeopático.

Mas em 1815 era pouco provável que um coronel de milícias enfurnado nos cafundós de Araçatiba já tivesse a “ciência” de um receituário que só ganharia foros clínicos a partir da virada do século XIX.

É de se reconhecer, pois, que o nosso coronel Falcão colocou-se à frente do seu tempo, como adepto dos banhos de mar nos verões capixabas. Pode-se mesmo dizer que sua pioneira contribuição à cultura do lazer e do turismo de praia, que se generalizaria somente muito tempo depois em nosso Estado, foi além do gosto pessoal que ele nutria pelas águas encapeladas do mar da Barra. Porque, ao descer em canoa pelo rio Jucu para o seu lazer de todos os verões (eu o imagino navegando debaixo de um chapelão de palha de abas largas), esse bravo pioneiro inaugurou a primeira rota turística de sol e mar do Espírito Santo – de Araçatiba à Barra!

Rota de cerca de quatro léguas é verdade, mas já com sentido de roteiro que implicava o deslocamento de um a outro local para desfrutar momentos de descontração e prazer, que são os elementos típicos do turismo de viagem.

Não foi, pois, sem razão o aborrecimento vivido pelo coronel quando soube da requisição de sua casa para hospedagem de um sorumbático príncipe alemão, quase pondo em risco a sagrada e saudável temporada de verão de um habitué da praia. Mas até pelo desejo de se manter veranista a qualquer custo, merecia o coronel o título de pioneiro do turismo de praia no Espírito Santo. Só não se pode afirmar, por falta de informações a respeito, que nessa rota de sol e mar, inaugurada pelo bravo miliciano, estivesse incluída a moqueca capixaba que virou um ícone da culinária litorânea do Espírito Santo. Mas, rigor histórico às traças, conceda-se ao coronel a possibilidade desse crédito. E bata-se outra continência para ele.

 

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