A pata do rinoceronte branco é o livro mais recente de Bernadette Lyra, contista capixaba nascida em Conceição da Barra. O conto é seu ambiente, gosta ela de dizer. Depois de ler este seu mais recente livro, a gente diz com ela: é mesmo. Ainda sabendo que já publicou romances e crônicas que permanecem no gozo dos leitores de bom gosto que os leram.
São quinze os contos deste livro, um deles tão curtinho quanto perturbador – como, não menos, o são os demais quatorze. Deixe-me explicar: se coloco o carro na frente desse conto que o leitor achará do meio para o final do livro, é que as magias de Bernadette Lyra imprimiram tanta tensão num texto tão curto que não há leitor que fique indiferente. É um choque. A tensão nas páginas mais derramadas das outras histórias vão entrando aos poucos pelos olhos da gente leitora, diferente do que ocorre nesse conto, “Vasos comunicantes”.
Já no início do livro a gente percebe que Bernadette Lyra não vai deixar por menos. Em “A criança”, primeiro conto do volume, já anuncia a que vieram os demais. Depois que Cão da Lua encontra a Criança e o leitor é conduzido a um edifício invadido por miseráveis e, como se não bastasse, por Cazumbis, almas do outro mundo que “não são Fantasmas, não são Vampiros, não são Lobisomens”, e cuja comida favorita é composta de “gemidos, suspiros, lágrimas expiatórias, gestos encardidos e restos de pensamentos poucos açucarados”, trocentos fatos acontecem diante de seus olhos. Tudo para que a autora, sutilmente, dê a chave para a leitura do restante do volume: “E nenhuma história oferece a certeza de que estar terminada, afinal.”
O conto que dá título ao livro conta a história de Sudam, com imagem concentrada numa pata que já não pode sustentar o corpo majestoso do último de sua espécie, o rinoceronte branco do norte, cujo estado deplorável obriga os veterinários a sacrificá-lo. No conto, duas pessoas assistem ao vídeo da morte de Sudam feito por Ami Vitali, fotógrafa da National Geographic, postado no Instagram com a triste legenda: “Hoje, testemunhamos a extinção de uma espécie que havia sobrevivido por milhões de anos, mas não pôde sobreviver à humanidade”, “humanidade” que, a despeito de tratar-se de palavra de sentido dúbio e um objeto artificial, é portadora de um terror que não pode ser compreendido por quem narra a triste história do rinoceronte sacrificado.
Se o leitor pensa que vou falar de todos os contos e entregar o jogo de mão beijada, está bem enganado. Mas, de gruja, não posso deixar de estimulá-lo a conhecer os destinos paralelos da menina Takuáporã-mirim, na escola chamada pela professora de Maria Rosa, e da dançarina Pote de Mel, cada qual trágico e seu modo, nem esquecer as histórias de duas cidades: a que, transplantada para um destino todo arrumadinho, perdeu a graça, e a que, pela desconfiança coletiva, deixou ir embora a chance de ter um arco-íris todo seu.
Este livro não é para leitores cheios de perspectivas otimistas. Nele, Bernadette Lyra não deixa por menos: fel é fel, noite é noite - e não a lua -, e o dedo, apesar do riso contido que suas insinuações provocam aqui e ali, o dedo é na ferida. E se falo em riso, falo do riso recompensante de quem ri de sua trágica circunstância, que é a melhor forma de não ser iludido.
Uma dica: neste livro concentrado cujas palavras mais insinuam que esclarecem, fique bem claro que em cada conto Bernadette Lyra leva a tensão até a última frase.
Outra dica: é preciso estar atento para ler Bernadette Lyra. Feito um Dostoiévski ligeiro e conciso, o andamento de suas histórias tem esquinas e vieses inesperados. Se o leitor bobeia numa palavra, numa mudança de linha, num início de parágrafo, vai se ver num outro ambiente do labirinto. O recurso? Volte, não se avexe, você apenas caiu num artifício da grande dama da literatura capixaba. Numa rápida releitura das últimas frases vai reencontrar o fio da meada e pode prosseguir. Se for esperto, vai concluir fácil que a autora conduz docemente, mas não tem trato com os desatentos. Vá, leia o livro. Depois venha me dizer.