Transpaixão: a linguagem do mistério

Ítalo Samuel Wyatt

A literatura não nasceu por obra da genialidade de algum notável ancestral ou grupo étnico que percebeu a potência dos sistemas de escritas a serviço da fantasia e do cotidiano. Na verdade, o surgimento da literatura é laudatório, subserviente, ápice de um soslaio, já que a sua origem remonta à necessidade de garantir robustez e a persistência das crenças, mitos e religiões antigas.

Os primeiros registros literários da História estão em linguagem poética, pois era preciso estabelecer códigos de repetições facilmente cantados para que a tradição oral não se perdesse nos rachados das tabuletas de argila ou na oxidação dos papiros. Assim nasceram as primeiras epopeias da Humanidade. (1) (2)

Os livros das grandes religiões foram forjados em linguagem poética. A Bíblia, por exemplo, além de concatenar infinitas polissemias e figuras de linguagem, possui livros circunstancialmente poéticos, como Cantares de Salomão. (3)

Na Idade Média, religião e arte estão a serviço de uma linguagem unívoca, forjada no temor e na esperança do Eterno. Por óbvio, a sensação dos ocidentais é de que o conceito de céu e inferno está mais enraizado na consciência coletiva graças à Divina Comédia, de Dante Alighieri (4), do que propriamente no apocalipse bíblico.

Malgrado os votos de autoridade sobre a bibliografia de Valdo Motta que o descrevem como um autor contemporâneo e moderno (5), a percepção que se tem da sua literatura é de que se está diante de um poeta que perfila a trilha milenar dos sacerdotes absolutamente entregues ao místico (sagrado e profano), ao caráter transcendental da palavra, à linguagem que serve de invólucro da fé.

Com a contemporaneidade e modernismo, Motta se comunica através da estética e percepção de fatos alhures. Todavia, poetas de todos os tempos estiveram a serviço das denúncias dos paradigmas sociais, da temática erótica (e até homoerótica) e da metalinguagem. Não é, portanto, perspectiva balizadora para distinguir o autor dos outros vultos dos anos 1990 que marcaram a geração vindoura.

Nesse sentido, o livro Transpaixão (6) é uma obra religiosa, erótica, sádica e incômoda. A começar pela epígrafe dantesca: “e quindi uscimmo a riveder le stelle” (e então saímos para ver as estrelas novamente). Nas primícias do texto, Motta evoca Dante Alighieri como guia para a sua confecção poética.

A coletânea é dividida nos capítulos Social, Existencial, Metapoética e Erótica. Repleta de citações bíblicas, maldições e outras referências divinas, o autor propicia uma experiência ampla da existência humana diante das fagulhas do tempo, das rusgas do cotidiano, dos atritos das peles e dos arrepios da Arte.

Toda a produção serve para perpetuar um profeta-conselheiro que se coloca de arauto para que as religiões surjam de forma ampla e plural, sem qualquer ideia minimalista de ecumenismo.

O poeta segue a palavra. Da palavra surgem todas as coisas. “Haja luz. E houve luz” (7). Para Valdo, “No Cu / De Exu / A Luz”(8). Confluências cristãs e africanas se unem de modo que o bem e o mal não se separam.

Costumeiramente, o Deus da Torá e da Bíblia é o Criador onipotente dono da justiça e da bondade. Em Transpaixão, todavia, “Eu Sou” assume feição de obsessão:

Não Posso Esconder:
- Deus é um troço
Que me incomoda,
[...]
Deus me persegue
como um remorso. (9)

A estilística de Cântico dos cânticos, do Rei Salomão, ressurge com vigor na literatura de Motta que percebe a grandeza erótica das palavras do Soberano e a ecoa em tom homoerótico.  O poema “Vem comigo, meu amado” deixa clarividentes as influências. (10)

Aflito com o seu tempo, diante das múltiplas possibilidades da fé, o autor percebe que compreendendo a poesia é possível chegar a qualquer mistério de qualquer povo, sem perigos de diásporas. Logo, sentencia no poema “Religião”:

“A poesia é a minha
sacrossanta escritura,
cruzada evangélica
que deflagro deste púlpito.

Só ela me salvará
da guela do abismo
Já não digo como ponte
que me religue
a algum distante céu,
mas como pinguela mesmo,
elo entre alheios eus.” (11)

O culto à estética não é recurso presente na obra de Motta. A estética é vassala da linguagem. Ela, por si só, não transcende e não possui sentidos e é por isso que o autor se isola da safra de poetas do seu tempo, pois o valor real da sua poesia está na polissemia do texto e não na grafia. Nesse contexto, Motta confessa:

“Consagrei-me sacerdote do Espírito Santo em desvarios, sensuais, mergulhando no vórtice de prazeres renegados, destilando a quintessência dos humores serpentinos. No fervor das paixões retemperei o espírito e, satisfeitas minhas ânsias, hoje descanso no Eterno, em núpcias comigo.
Descobri em meu corpo a réplica do universo, o umbigo do ubíquo. No âmago do abismo encontrei o bem e o mal em cominhão. E nunca mais fiz perguntas.
Serpentes me coroam.” (12)

Da cabala à numerologia, da Bíblia à Torá, do judaísmo ao candomblé: Valdo Motta transpira as forças espirituais, transforma o imutável, apaixona os instintos e proporciona uma fé que somente a poesia pode transportar. 

Italo Samuel Ferreira Wyatt é escritor, poeta, compositor, advogado e membro da Academia de Letras de Vila Velha.

Notas

(1) A linguagem suméria recepcionou a primeira grande obra literária da humanidade: A epopeia de Gilgamesh (2.600 A.C). Nos séculos IX-IV A.C, os épicos O Mahabharata e Ramayana são compostos na Índia. Já no século VIII A.C, Ilíada e Odisseia (obras atribuídas a Homero) impactam por milênios gerações de poetas, como Ovídio e Dante. No século V a.C, as tragédias gregas perfilam uma cadeia de cânticos que predestinam heróis, deuses e homens vis. A partir daí, várias nações do mundo descobrem a grandeza da literatura na ressurreição da oralidade e tradição religiosa.

(2) GLOBOLIVROS. O Livro da Literatura. 2. ed. São Paulo: Globo, 2018, p.18.

(3) Cantares de Salomão, obra do Rei Salomão (990 A.C – 931 A.C), descreve o amor do Soberano de Israel por uma certa Sunamita. Apesar de possuir um harém que contava com mais de 700 esposas oficiais e 300 concubinas, nenhuma delas possui a devoção do Rei. Salomão descreve essa mulher como uma pomba, alva do dia, éguas dos carros de faraó. Segundo ele, a Sunamita, de tão bela, quando passava pelos corredores dos palácios imperiais, todos os vassalos e servos rogavam: “volta, para que te contemplemos!”.

(4) O amor do poeta florentino por sua amada Beatriz (que simboliza na obra a Revelação e a Sabedoria Divina) é tão grande ao ponto de o poeta atravessar, junto de Virgílio (a Razão), o inferno e o purgatório até chegar ao céu para encontrar com a sua parte desejada. Desde a morte de Dante e consequente vulgarização do Texto por toda Europa, coretos e templos foram erguidos para que fieis leitores adorassem o autor desse casal.

(5) Raul Toledo aponta que “Valdo Motta reabre a agenda modernista” (Poesia hoje. Rio de Janeiro, EdUFF, 1998, v.1, p. 27-45). Massao Ohno diz que “Valdo Motta é um poeta extraordinário que pode ser equiparado aos grandes poetas que temos atualmente e que podem ficar relegados sem uma editora (A Gazeta, Vitória, 23. set. 1990. Caderno Dois, p.3). Razão maior possui José Carlos Barcellos que descreve o poeta capixaba como um “acontecimento” e compara-o com Adélia Prado na busca insurgente pelo erotismo e sagrado (Mais poesia hoje. Rio de Janeiro: 7letras, 2000).

(6) MOTTA, Valdo. Transpaixão: coletânea. 2 ed. Vitória: Edufes, 2008.

(7) É com o verbo, classe morfológica de palavra que nasce todas as coisas. A Palavra que o poeta persegue.

(8) MOTTA, ibid., p. 180.

(9) Ibid., p. 180.

(10) Salomão canta à sua Sunamita: “Vem comigo do Líbano, minha esposa, vem comigo do Líbano, minha esposa, vem comigo do Líbano: olha desde o cume de Amana, desde o cume de Senir e de Hermon, desde as moradas dos leões, desde os montes dos leopardos” (Cantares 4: 8). “Favos de mel manam dos teus lábios, ó minha esposa! Mel e leite estão debaixo da tua língua, e o cheiro dos teus vestidos é como o cheiro do Líbano” (Cantares: 4: 11). Ao passo que Valdo Motta entoa ao seu amor: “Vem comigo, meu amado, / fervamos o leite cósmico. / Celebraremos nosso gozo / no crisântemo festim”.

(11) MOTTA, ibid., p. 53.

(12) Ibid., p. 77.

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