Todas as mulheres do mundo

Saulo Ribeiro

Se me fosse solicitado precisar o lugar de Francisco Grijó na literatura produzida no Espírito Santo, certamente eu teria aí uma grande questão a ser desenvolvida, e talvez eu saísse dela com mais perguntas que respostas. Nascido em 1962, em Vitória, escreve contos, crônicas e romances. Publicou os livros Diga adeus a Lorna Love (contos, 1987), Um outro país para Alice (contos, 1989), Com Viviane ao lado (romance, 1995), Mulheres - diversa caligrafia (diversos autores, contos, 1996), Licantropo (contos, 2001) e Histórias curtas para Mariana M (romance, 2009). É cronista do Caderno 2 de A Gazeta. Casado e pai de meninas, é um homem cercado por mulheres.

Francisco Grijó não tem o selo capixaba impresso em suas palavras, não precisa disso. É desses escritores de obra universal, que mesmo percorrendo ruas, parques e praças de uma aldeia, pode ser lido em qualquer lugar com o mesmo assombro e prazer. Assim, prefiro, antes, traçar esse lugar. O de leitor assombrado e satisfeito com o livro escolhido. É assim que saímos da leitura de Todas elas, agora, uma obra madura, segura e, ao mesmo tempo, pulsante, viva. O volume reúne nove contos e será lançado este mês em Vitória.

Tive o primeiro contato com o livro graças à minha função privilegiada de produtor editorial da obra, ofício que dividi com a escritora Aline Dias e o designer Gustavo Binda. A equipe de produção contou ainda com a fotógrafa Amanda Brommonschenkel, que assina a bela e convidativa foto da capa.

A primeira leitura dos contos consumiu uma tarde, depois disso o silêncio de horas voltando a trechos do livro. O ritmo do texto e a coerência impressionam. Ao percorrer as páginas da obra, experimentamos várias vezes o insólito, mas não um insólito qualquer, sujo; trata-se de um insólito honesto. Em outras palavras, Grijó não é um ilusionista barato. Se quisesse, ele poderia nos convencer facilmente que a localização correta de Glocca Morra é ao lado de Bela Aurora.

Grijó não usa oito palavras se cinco bastam, nem três se quatro dão mais substância ao texto; e, perversamente, parece se divertir quando o abismo nos abre sorriso, um sorriso de bocas pintadas de batons de várias tonalidades e texturas. Sim, às vezes nem batom há, apenas um frasco com haleto metilato de mercúrio. Dessa maneira somos apresentados a Elas. Bem, não é de hoje que Elas visitam e moram na literatura de Grijó. Lorna Love, Viviane e Mariana M, por exemplo, são velhas conhecidas dos leitores de Francisco.

É, indiscutivelmente, um escritor que nutre um sentimento especial pelo sexo oposto. Mesmo onde o texto é bruto, truculento, transparece um sentimento de homem que ama as mulheres e sabe que elas avançam dia a dia, dirigem ônibus, nos ensinam, patrulham ruas, fazem nossa contabilidade, julgam nos tribunais. É um mundo que tende a se renovar em novas bases. Artaud conta que Heliogabalo, o anarquista coroado, teria chegado a Roma em março de 218, numa manhã, e realizou em um dos primeiros atos como imperador a substituição dos senadores por mulheres, para regressar, pensava, o mundo à razão. Impossível não ver no mundo de hoje um desejo do anarquista coroado.

Não que o livro de Grijó seja um libelo à libertação feminina, não é. Muito menos a obra de um anarquista coroado. De outro modo, a obra nos revela mulheres protagonistas, que manipulam homens, os matam. Impunham, inclusive, que as narre, que as escreva, que as nomeie. Louis Ferdinand Céline, escritor francês, disse que nos tornamos artistas com o que encontramos. É isso que a ficção do escritor Francisco Grijó encontra, é desse encontro que é extraída a essência de sua arte. Ele não está sozinho.

Muitos escritores dão a mulheres papel primordial em suas obras, lugar em que me incluo (tenho minhas dianas). Bandini, personagem de Fante, tinha em Camilla Lopez sua redentora. Petrarca cantou Laura em versos. Por Helena armaram navios e soldados. Reinaldo Santos Neves narrou Sueli e Kitty, e Debson Afonso cantou a história de Leontina com uma página em branco no excelente Batendo na porta errada, livro dos anos 80 que merecia reedição.

Em Todas elas, agora desfilam Matilde, a inesquecível; Camila, a estudiosa, ao lado de Eduarda, a redentora; Suzana, a que escreve cartas, perto de Cíntia, amiga diligente; Maya, enganada em Glocca Morra;  Marina que é Sabrina, Helina que é Virgínia; A bela Aurora, de Bela Aurora; Nancy, noiva do bancário; Malena, a de loucas peripécias por um nome que lhe engendre narrativa. Temos ainda prostitutas desvendadas pelo andar, a grávida e uma coadjuvante anônima, todas devassadas por Grijó das mais variadas formas, exploradas na vertical e na horizontal.

Aliás, temos na diversidade de formas de narrar outra rica característica do livro. Em cada conto o autor experimenta um narrador diferente, uma forma de escrever, de nos trazer os casos, acasos e consequências de tantas Elas em seus mais diferentes ângulos e situações.

Um exemplo: no conto Estranhos a bordo, que abre o volume, um narrador em primeira pessoa traça sua vida de crimes a partir de uma foto, imagem extraída de um filme de Hitchcock. Está ali a imagem dentro da narrativa, assustando e incomodando o leitor à primeira vista, mas guiando de forma magistral uma forma de ler e receber a obra.

Em A entrevista, outro conto, temos um diálogo que seria facilmente transposto para o audiovisual ou teatro. E há também outras histórias contadas em estrutura mais tradicional, igualmente excelentes. Grijó é mestre em dar voz a personagens diferentes, em trabalhar a harmonia de vozes diversas. Também faz o uso primoroso e bem dosado de erudição e vulgaridade.

 

Saulo Ribeiro é escritor e editor.

 

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