Tavares Bastos: o embaixador da poesia brasileira na França

Anaximandro Amorim

Antonio Dias Tavares Bastos. Certamente, você nunca ouviu falar nesse nome. Sinceramente, nem eu, há algum tempo. Engolido pela poeira da História, deparei-me com o nome de Tavares Bastos, pela primeira vez, lendo o “Mapa da Literatura Brasileira produzida do Espírito Santo”, do escritor Reinaldo Santos Neves, publicado no site “Estação Capixaba”. Desde então, luto para fazer o nome de Bastos reluzir novamente.

Você deve estar se perguntando: mas, por que ele está fazendo isso? E qual a importância desse Tavares Bastos na nossa literatura? Bom, em primeiro lugar, o motivo pelo qual me interessei pela vida e obra de Bastos foi pessoal: em plena Vitória da década de 1920, um autor que produziu toda sua obra poética... em francês! Ora, poeta, capixaba e francófono... a identificação foi imediata!

Em segundo lugar, Bastos não foi somente um poeta francófono, mas, também, um verdadeiro embaixador da poesia brasileira na França, no que reside, para mim, sua maior importância, sem querer, obviamente, desmerecer sua produção, cujos textos têm, sim, relevância literária.

Antonio Dias Tavares Bastos nasceu em Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, em 7 de julho de 1900, a despeito de Manoel Bandeira que, em uma crônica chamada “Coração de criança”, afirma ter Bastos nascido no Espírito Santo: “A. D. Tavares Bastos, nascido no Espírito Santo, nasceu poeta, e com ser brasileiro cem por cento, com uma tocante paixão pela França”. O equívoco é, aliás, repetido por Afrânio Coutinho, na "Enciclopédia da Literatura Brasileira", quando afirma, no verbete dedicado a Bastos, que este nasceu no Espírito Santo, sem, no entanto, precisar a cidade e a data completa de nascimento.

A celeuma é dirimida pela viúva do autor, Georgette Tavares Bastos, francesa de nascimento e tradutora, dentre outros autores, de Jorge Amado, sendo célebre sua versão ao francês de Dona Flor e seus dois maridos. Em carta a Renato Pacheco, reproduzida pelo site “Estação Capixaba”, Georgette afirma que o marido nasceu, mesmo, em Campos, além de precisar data de nascimento, óbito, dentre outras informações.

Os Bastos se mudaram para Vitória em 18 de julho de 1910, como atesta o jornal O Cachoeirano daquele mês, vez que a família dormiu na cidade de Cachoeiro, mais próxima do Rio. O pai de Tavares Bastos, José Tavares Bastos, era juiz federal, além de autor de obras jurídicas. A família, aliás, contava com um ascendente ilustre, Aureliano Cândido Tavares Bastos, bisavô de Antonio, jurista, senador, escritor e, por coincidência, morto na França, em Nice.

Não se sabe ao certo como Antonio aprendeu francês. O que dá para deduzir é que, desde cedo, ele deve ter tido contato na escola, vez que a língua de Molière era mais estudada que a de Shakespeare, naquele começo de século. Egresso de uma família elitizada, Antonio Dias deve ter tido contato, também, com material em língua francesa em sua casa. Arrisco dizer que Bastos deve ter aprendido (ou começado a aprender) a estudar francês graças à literatura, sobretudo à poesia, o que forjou seu vaticínio.

Uma coisa é inegável: a grande paixão do autor foi, indubitavelmente, o francês. Nem mesmo a formação jurídica, herança de família, foi capaz de sobrepujar esse amor. Tavares Bastos começou seguindo os passos do pai, estudando Direito no Rio de Janeiro, dentre 1918 a 1922, quando, logo em seguida, ele assina o primeiro termo de posse, ainda como bacharel, no cargo de promotor de Justiça, do Ministério Público de Vitória, onde trabalha por quase uma década.

É depois dessa primeira volta ao Rio que se tem a gênese da obra de Antonio. Consta em vários jornais da época, como o Diário da Manhã, que ele começava a se fazer conhecido, no circuito RJ/ES, publicando artigos e crônicas. Chegou, também, a contribuir para a revista Verde, dos modernos de Cataguases, MG. Mas foi em terras capixabas que um jovem sonhador, apaixonado pela França, concluiu os manuscritos do que viria a ser seu primeiro livro, Ballades brésiliennes, sob um pseudônimo, no mínimo, curioso: Charles Lucifer.

Ao que tudo indica, a alcunha teria alguma relação (fonética) com Charles Baudelaire. Lidos em francês, os dois nomes se aproximam fonicamente. Não há do que se estranhar: Bastos, certamente, foi influenciado por Baudelaire, seja no estilo, seja na abordagem. Le chantre d’occident, poema de abertura do livro de estreia, traz como mote o nascimento do poeta, no que há, aí, um paralelo com Bénédiction. As semelhanças não param por aí, havendo um poema chamado Le Phare que dialoga com Les Phares do autor francês, dentre outras possibilidades.

Ballades brésiliennes foi lançado em 1924, em Paris, pela Éditions de la pensée latine. Só por isso, o autor mostraria importância: um brasileiro, capixaba (de coração), escrevendo em língua francesa em Vitória, mas lançando uma obra poética na Cidade-Luz. Ballades, aliás, causou impacto, sendo citado no jornal Le Figaro de 1924 e tendo duas resenhas, uma na Revue mensuelle illustrée, do mesmo ano, e outra, no ano seguinte, na Les nouvelles littéraires. Aqui, o autor também foi resenhado no jornal O Diário da Manhã, de agosto de 1924.

O livro conta com 27 poemas, todos eles com versos livres e brancos. Ainda sobre Baudelaire, que, na obra O spleen de Paris, introduziu na tradução poética a “poesia em prosa”, afirmo que Tavares Bastos fez o contrário, ou seja, uma “prosa poética”. Alguns de seus poemas, que, na maioria, são longos (entre três a quatro páginas), contam verdadeiras histórias, como Aubade d’ivrogne, L’anverse e La secheresse.

Em Ballades brésiliennes é possível enxergar um projeto literário, que começa com o já citado Le chantre d’occident. O poema, além de introduzir esse “eu lírico”, traz uma provocação: o poeta, um “mestiço”, um “latino-americano”, vindo da “periferia do planeta”, se coloca como um homem “ocidental”, desafiando uma visão muito em voga na época (e, para alguns, ainda hoje), que só europeus e americanos do norte poderiam se “dar ao luxo” de assim se considerarem.

Hibridez, aliás, é a tônica não apenas do livro, mas, também de toda a obra de Tavares Bastos: um poeta brasileiro, mas que escreve em francês, língua de maior prestígio literário; um sul-americano que reclama sua ocidentalidade; um moderno, cujos textos ainda têm fortes cores de uma poesia parnasiano/simbolista (há um desfile de deuses da mitologia greco-romana e também persa, nórdica); um poeta que flerta com a prosa. Tudo isso é bastante encontradiço nesse livro de estreia.

Os 27 textos poéticos terminam com La sécheresse, em que o poeta trata, não apenas, da problemática da seca, fazendo, também, uma alusão com a morte, no que também podemos especular uma aproximação com o capítulo VI de As flores do mal, A morte. Vida e morte, um arco que vai do primeiro ao último texto, enquanto o nosso “bardo” canta sua terra natal, o El Dorado des milles couleurs, apresentando sacis, iaras, vitórias régias e até as capixabas areias monazíticas, num projeto que termina com a palavra “fim”, algo nada usual em um livro de poesias.

Tavares Bastos lançou, ainda, Les poèmes défendus, em 1925, de poesia erótica, e Cynismes, suivis de sensualismes, em 1927, todos escritos em Vitória e sob o pseudônimo de Charles Lucifer. Na carta de Georgette a Renato Pacheco, reproduzida no site Estação Capixaba, constam mais livros, porém, apenas esses três foram localizados. Os demais, ao que parece, ficaram no prelo, como indicam, inclusive, em alguns dos livros publicados.

A vida do autor, aliás, pode ser dividia em duas fases: uma, brasileira, ainda enquanto “Charles Lucifer”, cuja maioria dos trabalhos se deu em solo capixaba. Esse período vai até 1937, quando o autor, já residindo no Rio, abandona de vez a carreira jurídica e vai se fixar em solo francês, na cidade de Paris. Ali, começa a fase francesa de sua vida, quando ele abandona o pseudônimo e usa seu próprio nome, fixando-se no país até sua morte, em 1960. Nessa fase, o poeta visita o Brasil apenas uma vez, em 1952, para uma palestra no Sesc de São Paulo e uma estada no Rio de Janeiro.

A fase francesa da vida de Bastos é marcada pelo jornalismo e pela tradução. Ao que parece, ele, que, uma vez no Velho Continente, sofreu as agruras da guerra, preferiu se dedicar ao labor literário. Não que ele estivesse alheio ao conflito: na Paris ocupada pelo Reich, Bastos encontrou guarida em Vichy, comandando, ali, um programa de rádio para os brasileiros. Foi nessa época em que ele conheceu sua Georgette, vindo a se casar em 17 de dezembro de 1942, tendo como padrinho de casamento o embaixador Souza Dantas. Os Bastos excursionaram por Lisboa, Argel e Bad Godesberg, voltando para Paris em 1944. Com a criação da Unesco, Bastos é chamado para fazer parte da delegação brasileira, iniciando suas funções em 1946.

Em 1947, junto com o escritor e hispanista Pierre Darmangeat, Bastos lança Introduction à la poésie hibéro-américaine, recolho de poemas de autores portugueses, espanhóis e latino-americanos. Porém, em 1957, o autor organiza, sozinho, a importante Anthologie de la poésie brésilienne contemporaine, pela editora Tisnet, livro que ganharia uma láurea da Académie française e uma edição póstuma, pela Seghers, em 1966, com prefácio do imortal da ABL Paulo Carneiro, grande amigo do poeta.

Essa antologia conta com 227 poemas de 47 poetas (na edição de 66, com três poemas de Bastos e uma biografia feita pelo editor, em homenagem). Organizada por ordem de data de nascimento, ela congrega escritores nascidos entre 1866 e 1925. A escolha dos poemas originais é do próprio Bastos, que, claramente, deu preferência aos modernos, seja da primeira ou da segunda geração. Há, aí, grandes nomes, como os de Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto e a única autora genuinamente capixaba: Haydée Nicolussi, cujo Festa na sombra ganhou três traduções, figurando nesse ilustre rol.

A antologia também conta com um primoroso prefácio, escrito pelo próprio Bastos, que se revela uma verdadeira aula de literatura brasileira para os franceses. Nele, o escritor faz um percurso desde a Carta de Pero Vaz de Caminha até os Modernos daquele período, resgatando os principais autores e movimentos literários do Brasil ao longo dos séculos. O curioso do texto é uma citação a um malogrado Congresso de Antropofagia, que teria lugar em Vitória, em 1929. É o Espírito Santo de Bastos, terra de seu acolhimento, aí, também representado!

É por tantas razões que podemos, sem dúvida, considerar Antonio Dias Tavares Bastos como um “embaixador da poesia brasileira na França”. Foi pela esmerada tradução desses mais de duzentos poemas que os franceses puderam conhecer (e ler) o que de mais significativo foi produzido no Brasil no período, mas, também, pela sua obra poética, que faz dele um escritor estabelecido entre dois vetores, um brasileiro que escreve em francês, um amante da língua e das coisas da França, mas que nunca perdeu sua identidade brasileira.

Enfim, há muito mais coisa a se falar dessa personagem tão interessante e, certamente, há muito mais a se descobrir. Estou apenas no começo das minhas pesquisas. Pelo menos, um primeiro esforço já foi feito, o de resgatar a memória de um autor cuja trajetória, por si só, não merece cair no esquecimento.

 

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