Sonetos em crise

Krishnamurti Góes dos Anjos

Reza a lenda que as primeiras produções poéticas em forma de soneto teriam ocorrido lá pelo século XII, portanto no tempo que entendemos hoje como Idade Média, e que Dante Alighieri teria sido o primeiro grande poeta a compor sonetos. Definido como poema de quatorze versos, o soneto tem admitido bem pouca variação ou experimentação formal. Conservam-se seus dois modelos tradicionais: o italiano (fixado por Petrarca) e o inglês (fixado por Shakespeare), sendo o primeiro dividido em dois quartetos mais dois tercetos e o segundo formado por três quartetos mais um dístico de versos normalmente metrificados e rimados. Entretanto, e com o passar do tempo ocorreram experimentalismos como o do verso branco (sem rima), que acontece na poesia moderna.

Sonetos em crise, obra do escritor capixaba Jorge Elias Neto, recentemente lançado pela editora baiana Mondrongo, é reunião de 39 sonetos com a temática de crise. Mas de qual crise estamos a falar? Da crise do gênero lírico de forma fixa? Ou, como nos pergunta o autor em nota introdutória: “Traduzir a crise do homem do século XXI por meio do soneto seria Anacronismo?” É pergunta interessantíssima essa, que a leitura atenta da obra responde cabalmente. Se, por um lado, parece haver a provocação ventilada por Massaud Moisés (em A criação literária), de que a intermitente “presença do soneto talvez advenha de uma resposta ao caos e ao extremado liberalismo vigente. Como se fosse a busca de um necessário retorno ao equilíbrio formal voluntariamente perdido, a fim de contrabalançar a dispersão que conduz a encruzilhadas e becos sem saída, quando não a estéreis exercícios de ‘liberdade’ criadora. O soneto, universo fechado como um ovo, prestar-se-ia bem para esse reencontro, graças ainda à sua congênita aliança com a música. Seja por isso, seja por uma espécie de obediência a atavismos incoercíveis, seja simplesmente para variar, o certo é que o soneto continua firme nos dias de hoje.”

Por outro lado, Jorge Elias Neto é autor experiente e bem sabe que tanto se pode criar poesia de valor dentro dum esquema inteiramente livre de qualquer pressuposto, como empregando o soneto na sua forma padrão (mais usada no Brasil - duas quadras e dois tercetos) acrescentando-lhe, ou não, as alterações que julgou indispensáveis ao seu objetivo de comunicar poesia. O poeta sabe que a vida se afirma em uma forma qualquer, tanto melhor quanto mais viva. Toda a expressão que decorre necessariamente da ideia a exprimir-se é boa e a ideia harmoniosa suscita forma harmoniosa. É preciso lembrar aquilo que alguém já afirmou, o conteúdo poético “nasce” com a expressão correspondente, rebelar-se contra determinada forma ou arredá-la do arsenal expressivo disponível significa admitir uma impossível separação entre a forma e o conteúdo, atentar contra o próprio mecanismo da criação poética.

Sonetos em crise reúne composições de conteúdos líricos e até confessionais em sua maioria, mas acrescenta aqui e ali outras que beiram à sátira. Seja como for, e com efeito, a escritura de um soneto demanda labor e suor. Se a inspiração, geradora da ideia poética, é componente inarredável na elaboração de um soneto, a tecedura técnica é tarefa de oficina que exige do poeta largo conhecimento do idioma e diversos experimentos. Como nos lembra Júlio Dantas, é preciso aproveitar bem os 14 versos de que se dispõe, dizendo “tudo” o que se tem de dizer, mas “só” o que é indispensável dizer-se. Portanto, tem que se pensar bem no soneto antes de principiar a escrevê-lo. Jorge Elias tem muito a dizer sob o ponto de vista de sentir o momento em que vive, dentro desse quadro nebuloso de inícios do século XXI, no qual “crise” é palavra que bem expressa a ambiência geral do mundo. E consegue, através da limitação dos 14 versos, profundidade de pensamento poético.

Vale ainda registrar que o poeta consegue registrar seu mundo de imagens e ideias que lhe povoam o espírito, construindo verso a verso o que leva ao conhecido “fecho de ouro”, que se reconhece no último verso do segundo terceto. Aquilo que fecha a composição e dá a razão de ser a todas as suas partes, a todos os seus conteúdos parciais contidos nos versos anteriores. Aí temos o corpo poético, harmônico em suas quatro partes. O último terceto, mesmo emprestando organicidade ao resto, é também peça autônoma, de existência própria que não só condensa o conteúdo esparso ou subentendido nos demais versos, mas termina por constituir-se em máxima que concentra o difuso conteúdo dos 13 versos anteriores, e na qual se plasma uma verdade lírica de profunda significação.

Jorge Elias Neto conjuga os recursos da sensibilidade e da razão, nos 14 versos de cada um de seus sonetos nos quais as palavras encontram seus pesos e suas valências evidenciáveis na correlação com as demais. A máxima polivalência, em virtude do próprio caráter ocluso do soneto. Resumindo; o máximo de sensibilidade e inteligência, num mínimo de palavras.

 

Autismo ( p. 19)

Derrame-se, lambuze-se no espaço,
esvazie seu deserto de perdas
neste simulacro, falso regaço,
mas deixe nas margens alguma prenda.

Sei que o verso, este destemido inválido,
guarda a casca a se desprender da pele
de um corpo forjado em febril acaso
imberbe e sem rumo, a purgar de febre.

O crime imperfeito, toda essa farsa
da imensidão do Mundo sobre o olhar
alienado, despejado nas páginas,

e a forja que lhe cabe, a tragédia
na linhagem eterna dos poetas
que flertam o ocaso da matéria. 

 

Diálogo entre poetas (p. 29)

Será acaso Dante este estampido,
estreia derradeira de um sonho,
derramado nos campos, perseguido,
aquém dos portais do divino antanho?

 E agora, José, se nem mesmo a valsa
 de um azul Danúbio – já assaz retinto –
reafirma os laços, nos salões e praças,
onde sombras passam de olhar soturno?

Se o inferno à Terra já não traz sentido,
e a surpresa empresta o poder ao tédio,
resta à indiferença polvilhar o olvido.

A pedra que brilha ofuscou o concreto,
e a palavra Má-qui-na perdeu o fascínio.
Sair de Minas, do Mundo, assim, perdido? 

 

Folhas secas de outono (p. 49)

Paixão, esta folha de outono,
luz incerta de raio obliquo,
que desperta viva no entorno
do fogo, o tremor de um aflito.

Sou um ser do outono, de um crepúsculo,
que faz brilhar o olhar dos loucos,
e faz o horizonte fecundo
ao germe melancólico

dos suicidas, dos sem afeto.
E a carne, arfando, sem um rumo,
em busca de um pouso, de um teto,

tem no rubro da tarde o lúmen,
a medida de tudo, o concreto
do frio, da origem do Mundo. 

Krishnamurti Góes dos Anjos. Escritor, pesquisador e crítico literário. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo– romance histórico, Gato de telhado – contos, Um novo século – contos, Embriagado intelecto e outros contos, Doze contos & meio poema e À flor da pele – contos.  Tem participação em 28 coletâneas e antologias, algumas resultantes de prêmios literários. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, O touro do rebanho – romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações.

Referência

NETO, Jorge Elias. Sonetos em crise. Itabuna : Editora Mondrongo, 2020, 98 p.

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