Salmos da montanha

Fábio Daflon

Com que salmos, suratas, analectos ou bagavadeguitás se pode expressar o saber a fé? Em que boa companhia a fé pode estar? Num dos versículos mais belos do Alcorão está escrito: “Se os oceanos fossem feitos de tintas, elas seriam insuficientes para descrever a fé do Islã.” Imaginem então a dificuldade atinente a resenhar o livro Salmos da montanha, de Matusalém Dias de Moura, que, essencialmente, e com que essência, é um livro sobre profissão de fé. Infelizmente, não li todos os livros do autor, mas já lhe disse que Salmos da montanha, ao menos entre os livros que li da sua lavra, é a sua obra-prima.

A primeira impressão do primor da obra nasce na leitura dos primeiros versos, nos quais o grande sonetista abre mão da métrica e ousa versos livres em poemas sem rimas, à semelhança de crônicas, gênero literário em que o poeta já demonstrou talento e método, mas os poemas não são crônicas nem prosa poética, são poemas todos eles com individualidade capaz de abraçar o poema seguinte, como se tais elos fossem capazes de formar um cordão de onde pendesse o crucifixo do Cristo perto do coração do poeta.

Cristo também representante da Sagrada Família, Cristo em comunhão com a natureza que invade a casa e a circunda, como no poema “Aranha” (Pág. 11), no qual uma caranguejeira invade a casa desafiando os familiares. O poema é o primeiro do livro, e, salvo melhor juízo, o único que trata o tema do medo, porque os homens de fé não costumam ter medo de nada, se sentem protegidos e capazes de na passagem entregar o corpo à natureza em comunhão com Deus. Voltaremos a essa questão mais adiante.

A ação do homem sobre a natureza é logo no poema seguinte abordada com candura relativa a ela, a natureza, no poema “A cacimba”, do qual transcrevo os primeiros e os últimos versos, enquanto os dos meio citam o encanamento da água, vamos a eles:

Os funcionários da Prefeitura
Acabaram com a mina d’água
do fim da “Rua dos Pobres”.
Entupiram-na com os restos do barraco
onde morava a velha benzedeira.

Era bem melhor no tempo da cacimba,
de uso comum,
no fundo do quintal de Dona Geraldina,
em que a água era clarinha e de graça.

É óbvia acima a percepção da ação hostil do homem em relação à natureza. Poema que denota, por sua vez e também, o frequente uso que o poeta faz da memória, como se, o hoje senhor de idade, ainda se visse no espelho com a percepção que a inocência faculta para as descobertas dos fatos mudando a ambiência ou o ambiente do mundo experimentado. E, se são ao menos de quatro grupos as experiências da vida: satisfação, frustação, hostilidade e dor, o poeta não se exime de falar sobre elas; como, por exemplo, no poema “A camisa que não tive”, no qual nos relata a experiência de frustração de forma tão sutil que a engrandece:

Nunca me esqueço do velho caixeiro
a falar com minha mãe
sobre uma popelina branca,
recém-chegada na loja,
ela a lhe dizer:
- É, mas eu queria uma de listras azuis,
para a camisa do meu menino.

Quanto à experiência da satisfação, já no poema “Apesar de proibidos” (Pág. 23), Dias de Moura nos fala do amor, companheiro da fé; vejamos os versos de meados do poema ao fim:

Apenas nossos olhos brilharam a luz do cio,
eternizando, em nossas almas,
aquele instante de aceitação e segredo,
delírio e cumplicidade,
em que fomos apenas um.
Silente, compreendi o pedido que não me fizeste
com os lábios
e tu, olhando-me, emudecida,
adivinhaste também o meu querer.
E assim tomados pela ansiedade,
Completamo-nos, apesar de proibidos...

Parece-nos claro que o plural de dois usado na palavra proibidos se refere mais à preservação da intimidade dos amantes do que à proibição, e é nessa intimidade que floresce o amor companheiro da fé, no livro em tela. Amor à natureza, que cada vez mais pede ao mundo que os homens a deixem em paz.

No poema “Arrependimento” (Pág. 24), o poeta fala da dor mais alta:

Doem no silêncio do meu espírito,
solitariamente,
os espinhos do arrependimento
pelo filho que não tenho
e pela menina, pedaço amado do meu corpo,
que não se jogou ao meu encontro,
de bracinhos abertos e sorrisos inocentes,
pedindo colo,
em manhãs jamais vividas.

Sim, o poeta não teve filhos, e talvez a maior das frustrações seja o que não nasce a partir de um amor celebrado que o mereceria tanto! O livro Salmos da montanha é dedicado ao amor da vida do autor, Lúcia, sua esposa. Amor em festa de paz contido no erotismo velado dos seus versos. Amor cantado também em relação a Iúna, terra natal de Dias de Moura, como no poema “As montanhas” (Pág. 25):

Entre as cordilheira do Caparaó
e a serra do Valentim,
montanhas de variadas altitudes
completam a beleza paisagística de Iúna.
Umas nominadas, outras não.
O Pico Colossus, visto de distantes lugares,
simboliza os demais.
A Pedra do Pecado, na Água Santa,
e a Pedra do Cálice, no Córrego do Bálsamo,
com suas lendas místicas,
representam a fé católica de muitos.
Tantos montes fazem o céu mais estreito,
diferente do litoral.

Com certeza, a metáfora “o céu mais estreito” se refere à senda da retidão, à vida levada adiante cumprida, no dia a dia, de acordo com a ética cristã. E, se nos parece óbvio que a satisfação é obtida também pelas ações, pensamentos e obras, que evitam a satisfação, a hostilidade e a dor, não podemos, mormente, esquecer que a prudência é a aplicação dos princípios aos fatos, sendo a aplicação dos dez mandamentos para os homens de fé o modo do bem viver, desde que o homem/a humanidade foi “condenado (a)” com o suor do próprio rosto.

Os versos primeiros do poema “Com o suor do rosto” confirmam a alegria de tal destino construído:

“Fazenda ganhada no lombo dos burros”,
dizia minha avó, orgulhosa do marido tropeiro.
“Homem trabalhador que só ele”, gabava-se ela.

Mas o poema é belo e longo, com cenas da roça e do comércio; finda com os seguintes versos:

Essa minha vó era o arquivo histórico
da família.
Que Deus a tenha à Sua direita!

A morte como memória sempre é a da perda de entes queridos, são, principalmente, eles que nos trazem o sentimento de saudade para além da nostalgia das coisas mudadas ou perdidas. Com minha morte nasci; dela não faço segredo; nos confessa o autor, no poema “Último desejo”:

Quando eu morrer,
não enterrem meu corpo
em cova rasa nem funda.
Deixem-no à beira de uma floresta,
Integrado à natureza;
ao ar, ao vento, ao sol, à chuva
à água e aos animais.
Assim, depois da morte,
ainda serei vida.

Simultaneamente, o poeta é telúrico e metafísico. Para Dias de Moura a reintegração à natureza é o encontro com Deus, seu último desejo é essa eternidade, porque só assim é possível para o poeta o fim do seu caminho, reintegrando-se de forma completa, e ao mesmo tempo, com a natureza e o céu estreito de Iúna.

Leia outros textos

Voltar