Os signos no discurso poético de Jorge Elias

Ester Abreu Vieira de Oliveira

Neste período de pandemia ocasionada pela covid-19, o correio me trouxe Sonetos em crise, de Jorge Elias Neto, médico cardiologista que pertence à Academia Espírito-santense de Letras, Cadeira 2, cujo patrono é Graciano dos Santos Neves, que, também, foi médico. O lançamento é original e humanitário, pois a arrecadação servirá para alimentar pessoas sacrificadas pelo Corona vírus, o que mostra a sensibilidade do poeta.

Como em outras produções poéticas de sua autoria, Jorge Elias Neto ratifica com essa obra seu domínio na arte de jogar com os signos do discurso e do sistema da língua.

Uma retomada de seu percurso deixa ver o curioso de seus títulos e a abrangência dos temas de se vale Jorge Elias para a feitura de seus versos, que registro na ordem cronológica de lançamentos, oferecendo ao leitor, com ligeiras pinceladas, o seu conteúdo:

1 - Verdes versos (2007), dedicada a familiares, inclusive, a avó Bela, tema do poema de abertura, a obra contém três partes. Cada uma com indicação da época de sua criação: “Verdes versos” (2000-2004), “Vegetariano”, (2006). Nestas produções, no poema “Púbis Matris”, o poeta se cala diante da vida que nasce. A terceira parte é “Querença” (2007). Na obra poética de Jorge Elias pode-se observar a preocupação de datar a época da criação dos poemas.  

2 - Rascunhos do Absurdo (2010) divide-se em quatro partes: “Livro de Notas”, “O estalo da palavra”, “Gaza” e “O encantamento do poeta maratimba” e está marcada pelos constantes questionamentos ontológicos, que se repetirão nos livros subsequentes: tema da morte, da poesia do poema. E o poeta confessa essa verdade na apresentação.  Já foi dito (opinião que compartilho) por Gustavo Felicíssimo, um dos prologuistas de livros de Jorge Elias, que a marca de sua obra é filosófica, metafísica e existencialista. O poema “Livro de Notas”, que inicia a primeira parte, fala-nos da força ontológica do poema: “O poema ensina a estar de pé”. A segunda parte inicia-se com a temática da inconstância do tempo, com o poema “Claro enigma”. A terceira, de cunho bem social, dá início com o poema “Gaza”. Na última parte, a quarta, o tema da morte é dominante, destacando-se uma homenagem póstuma numa elegia a Miguel Marvilla.

3 - Os ossos da baleia (2013), que o poeta dedica aos amigos, está dividida em: “Diálogos da sombra”, “Os ossos da baleia” e “ Balada de um imortal”.

4 - Posse do Acadêmico Jorge Elias Neto (2014). Incluo esta obra entre as poéticas, apesar de serem dois discursos, pois nela insere-se um estudo da poética de Jorge Elias, feito pela acadêmica Josina (Jô) Drummond. 

5 - Breviário dos olhos (2014), conjunto de versos curtos, uma forma de eco de aforismo, sentenças breves de caráter moral ou conceitual, e epigramas. Encerra, segundo o autor, reflexões que destacava em seus versos. Essa obra remete às greguerías do vanguardista espanhol Ramón Sender, máximas ora filosóficas, ora poéticas ora humorísticas, consideradas pelo autor como “metáforas + humorismo”, que eram uma forma de captar o passageiro com humor, por exemplo, sobre o tempo,  “o relógio não existe nas horas felizes”, ou sobre a emoção, “As lágrimas desinfetam a dor” Mas o Breviário dos olhos supera as greguerías e os aforismos por seus pensamentos contidos poéticos metafóricos. Ex: “A maior morte/ em vida,/ é a impossibilidade”, “Cada ilhéu traz uma concha/ guardada a sussurrar saudades”, “Deixarei pra as ondas decidirem/ sobre a imortalidade/ de meu nome na areia.”

6 - Breve dicionário (poético) do boxe (2015) com temas ligados a essa luta  e ilustrado com ações concernentes a ela. O poeta considera o boxe uma arte “A arte possível / com punhos cerrados”.  

7 - Cabotagem (2015) é uma reconstrução poética de Vitória: sua gente, seu movimento e sua panorâmica - lugar de “cabotismo” de “Ir e voltar:/ sonho de uma sombra”. Há poemas longos e curtos, e de estrofes variadas com versos livres. 

8 - O ornitorrinco do pau oco (2018) é a coletânea de três obras já publicadas: Verdes versos (2000-2007), Rascunhos do absurdo (2007-2010) e Os ossos da baleia (2010-2011) e a inclusão da obra que dá nome ao livro O ornitorrinco do pau oco (2018-2017). As estrofes dos poemas são variadas em sua extensão, há um poema em francês, “Le risque” (p. 140) e um soneto, “O grilo falante” (p. 105), o primeiro que encontrei até então em suas obras. Nessa antologia de suas obras, poderíamos responder a um porquê dessa união com o poema “Palimpsestos”, que se encontra na terceira parte,  Os ossos da baleia: “Quando busco/ vozes perdidas no exílio/ e rumorejo versos/ pretensiosos; ressuscito mortos.” Esses versos que dão nome ao livro são diálogos poéticos de um ser atormentado com o mundo circundante. Um eu lírico que “foi testemunha “e questiona “Em que país se sustenta o homem” (p. 102).

9 - Sonetos em crise (2020), na interpretação do autor de sua obra em “Nota do autor”, explica que objetiva “impor-se” como “necessidade da experimentação” formas fixas para falar da crise do homem. E questiona: “é crise do soneto ou crise do poeta”?

Por que “crise do soneto”, forma métrica clássica fixa, cujo nome, em italiano, significa pequeno som e, convertido para o português, “pequena cantiga”, trazido à literatura portuguesa por Sá de Miranda, no século XV, quando esteve na Itália?

Crise é rápida mudança, é desconstrução, é violência. Mas na forma do soneto, construção de quatorze versos, distribuídos em dois quartetos ou quadras, nas duas primeiras estrofes, e dois tercetos, nas duas últimas estrofes. Sua forma dissertativa, tem uma introdução na primeira estrofe, desenvolvimento na segunda e uma conclusão na terceira estrofe, e chave de ouro na quarta estrofe. Como Sonetos em crise tem essa forma, não há negação ou inversão dos valores tradicionais nos poemas desse livro.

No Brasil alguns poetas se destacaram por seus sonetos, como no século VII, Cláudio Manoel da Costa, Luís Guimarães, no século XIX e Machado de Assis, que ganhou fama com os sonetos “Círculo vicioso” e “A Carolina”.

Na beleza formal do soneto há equilíbrio.  Em sua forma clássica é construído em versos decassílabos com o tema da figura feminina.

Mais tarde, já no século XIX, o soneto adquire versos alexandrinos ou dodecassílabos, com os poetas parnasianos.  No decorrer do tempo houve alterações no soneto: seja o de treze versos, o de 28 versos, o com “estrambote”, e o de métricas variadas.

Em Sonetos em crise, não existe injunção categórica da forma clássica.  O ritmo e a musicalidade do verso impõem-se à tradicional forma fechada e apresenta com mais frequência versos com rima assonante ou livre. Apesar dessa discrepância formal com o soneto clássico, não podemos dizer que a marca significativa de “crise” para Sonetos em crise seja só a mudança da forma clássica do soneto, que, também, como nos referimos acima, vinha sendo modificada.

Jorge Elias ilustra a obra, apresentando na introdução o poema “Versos íntimos” do paraibano do século XX, Augusto dos Anjos, em cuja poética transgressiva, o eu lírico se desespera para salvar a humanidade por meio de seu projeto fracassado. É marcante nesse poeta temas da solidariedade universal, ligados à desumanização, dúvidas existenciais, emoções angustiosas, impregnadas de melancolia, o desamparo, a solidão e a morte.  No soneto “Versos íntimos”, o eu lírico de dos Anjos se sente desamparado, desiludido com a humanidade e fecha o soneto: “Se alguém causa inda pena a tua chaga,/ Apedreja essa mão vil que te afaga./ Escarra nessa boca que te beija!” Esse sentimento de desamparo e desilusão vai permear o livro Sonetos em crise”. O sexto soneto, “De profundis” (p. 21), é um exemplo nos versos conclusivos: “pois cada súplica, lamento, oferta,/ resta incógnita nas ramas da tarde,/ que não acoberta o erro, a empáfia/ dos salmos, e os apelos dos covardes/ que surgem e se insurgem nesta terra,/ desfrutando a essência do milagre.” Também se percebe esse sentimento de insatisfação e impotência do homem ante uma humanidade indolente, no primeiro soneto apresentado no livro, “Soneto sem teto” (p.15). Comprova-se sua conclusão, nos dois tercetos: “E nada sobra que se preze e guarde/ àquele ser que se debate firme/ contra uma vida que esmaga e late.// Resta o engate ao cerne da maldade,/ sem esperança, se atirar ao crime,/ e ser centelha no porvir da tarde.”  

Assim Augusto dos Anjos é a afirmação, o esteio em que se apoia Jorge Elias para começar a apresentar os 38 sonetos de Sonetos em crise, produzidos de 06 de abril de 2018 a 12 de outubro de 2019, nos quais um eu lírico busca a razão do existir: “Eis o embate, vaidade inerte do fantasma,/ que busca a verdade na estética da arte,/ impondo regra ao cadafalso, um cataplasma.” (poema “O que não cabe 3” - p. 75).

Porém, como já foi apontado por Aristóteles, a poesia é inerente ao homem porque ele tende a reproduzir, desde criança, imitativamente, por semelhança e, na poesia, a metáfora, principal instrumento da poética, a imagem criada, aproxima e toma a forma semelhante dos objetos, imitando a natureza, mas sem copiá-la na íntegra, tornando o objeto único e original e colocando-o dentro de nós. A metáfora na poética de Jorge Elias é um emprego constante de quem é sensível e conhecedor dos matizes dos signos linguísticos, como já falamos, aqui, quando mencionamos os livros antecessores da obra ultimamente lançada, justamente para mostrar que o poeta não inova, mas se aperfeiçoa (essa foi causa de listarmos as obras antecessoras do livro Sonetos em crise, objeto de nossa apresentação).

Em Sonetos em crise, não só pelas metáforas, como pela sintaxe e signos, o processo da criação da obra torna-se dramatizado, obrigando o leitor a ler e a reler, a permanecer mais tempo meditando. Nesse processo de um universo poético particular, freia-se o ritmo da leitura, que volta constantemente sobre seus passos, dificultando encontrar a precisa informação imediatamente. As palavras tornam inacessíveis para um leitor menos atento. À primeira vista, os poemas parecem não ter sentido lógico. Nesse universo hermético há um jogo de signos que ressalta o caráter sagrado-lúdico da totalidade do poema.

Lembramos que a utilização do símbolo foi muito aproveitada pelos simbolistas franceses (Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Mallarmé, entre outros), mas foi generosamente utilizada no Renascimento por San Juan de la Cruz. No entanto a simbolização e complexidade na poesia cresceu na Geração do 27, na Espanha.

As imagens da poética de Jorge Elias, ligadas às circunstâncias existenciais, lembram a estética dos poetas da Geração do 27 espanhola, da qual pertenciam Federico García Lorca, Vicente Aleixandre, Rafael Albeti, Gerardo Diego, Luis Cernuda, Jorge Guillén, entre outros poetas de renome dessa época.

Nessa época, os poetas gostavam de criar por meio de imagens verbais inovadoras algo comum à Geração do 27, como a tecnologia e o subconsciente. A obra não era uma simples expressão emocional, mas uma expressão que deve responder às premissas estéticas. Nesse universo de irracionalismo poético, podem ser inseridos os sonetos de Jorge Elias, que questiona a realidade problemática do século XXI.

O soneto “A cama posta” (p. 23) traz o tema da amargura diante da transitoriedade da vida. A noite, personificada, pensa, “por temer o fim”. A morte, “transe absoluto”, “açoite imposto”, “desfolhar de sonhos desmedidos”, “o remover das vendas”, “uma pantera”, “essa comédia”, “segredo ao pé do ouvido do ausente” é a angústia do eu lírico. Vamos entendendo, primeiro porque nos emocionamos pela beleza do som, mas não pela significação lógica, ao término de uma primeira leitura. Há uma associação irracional. Depois da descoberta podemos ler com profundidade o poema de escritura densa, polivalente. A fonte da inspiração se encontra nas profundidades do eu (do homem mesmo) em crise, em manifestação de seus sentimentos para com o mundo e a arte. Daí compreendermos a abrangência do adjetivo “crise” que se encontra no título do livro Soneto em crise e que podemos perceber na nota inicial, quando o autor se faz intérprete da obra e explica o gênero do livro e sua matéria: “traduz a crise do homem do séc. XXI”.

No soneto “Arrimo da pedra branca” (p. 53), na ambiguidade dos signos, detecta-se o tema de uma autobiografia, nas inquietações do próprio autor. Nas imagens, que poderíamos classificar com a terminologia dada por Carlos Bousoño, de “visonárias” (1), parece desaparecer o sentido lógico, pois o seu sentido se esconde nas dobras da emoção. Há um plano real e outro da imaginação. Com o recurso linguístico da força dos signos, aparece um deslocamento qualificativo na locução, “triste pedra”, na personificação de um ser bruto, que será a metáfora de seu corpo, do próprio eu lírico: “Minha epifania é carne”. A descoberta com a imagem da “fumaça branca” que tanto pode anunciar a alegre nomeação de um novo Papa ou mostrar a tragédia humana da dependência de uma “triste pedra” que aniquila o homem: “Resta a loucura da fumaça branca/ de uma triste pedra que me alicerça,/ muro e casa. Ah, febril esperança!”    

Há poemas, às vezes, perto do nonsense, mundo sem sentido, ecos de Camus, Nietzsche, Heidegger. Um exemplo seria o soneto “O século natimorto” (p. 77), que transcrevo aqui e, nele, o eu lírico procura projetar o sentimento de torpor, de impossibilidade do ser.

Recorda o que é denso e o que flana,
o que há de espesso nos lençóis,
as dobras, o suspenso, a gana,
o remorso no tom da voz.

Sonolência, torpor, quebranto,
a rispidez no grito, o ódio, os
nós no pulso, um certo acalanto
do algoz. Nos seios, a paz dos fluidos,

a cadência do esgar, suspiro,
passos do sátiro no pó.
Um não despertar, um alívio

do bardo, contrito e só,
como se lhe chegasse ao ouvido
o tropel, uma morte feroz.

Por fim, afirmamos que Sonetos em crise,  saído agora, neste período tenso  de o ano de 2020, subverte carnavalescamente o ritual social e existencial, numa escritura densa e, polivalente, segue as pistas abertas pela poesia moderna e extravasa a inquietação de um EU.

Ester Abreu Vieira de Oliveira é professora emérita da UFES, presidente da AEL, vice-presidente da AFESL, tesoureira da APEES.

Referência

(1) BOUSOÑO, Carlos. Superrealismo poético y simbolización. Madrid: Gredos.1978. p. 31.

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