O neobarroco em Aninhanha

Josina Nunes Drumond

Eu sou nada eu não existo. O senhor sabe que minha
natureza é volátil. Um sonho fumarento. Nada.
Um existir de papel. (A,91)

Tanto pior tanto melhor não esclareço. (A,12)
Pedro J. Nunes

1 - Trilhas a percorrer

Neste trabalho, pretendemos percorrer algumas trilhas neobarrocas da obra Aninhanha, de Pedro José Nunes. Seguiremos traços conceituais, atentos à imponência do caminho e às flores que o bordejam: trata-se de figuras de estilo e de recursos estilísticos que embelezam a composição do ramalhete. Restringimo-nos à colheita das flores que enfeitam barrocamente as inúmeras sendas que se dispõem diante de nós. Tropeçamos em hibridismos linguísticos, escorregamos em distorções sintáticas, mas percorremos prazerosamente as trilhas que conduzem ao objetivo proposto. Devido à polissemia da obra, deparamos com inúmeras possibilidades de atalhos, nos quais corremos o risco de nos perder antes de retomar o caminho principal. Às vezes ficamos desnorteados diante de uma escritura labiríntica, fragmentária e hermética. Escolhemos apenas algumas “trilhas mais batidas”, ou seja, mais recorrentes e/ou relevantes, segundo nossa leitura, que, como toda leitura, é incompleta e lacunar.

Começamos pela resenha da obra, seguida da conceituação do neobarroco. Logo após, focalizamos alguns aspectos conceituais, tais como: busca da identidade, niilismo, reificação, zoomorfismo, indefinição, prazer da imprecisão, morte, estética do feio, labirinto, entre outros. Quanto aos aspectos formais, abordamos a flexibilidade da sintaxe, a subversão às normas gramaticais, a intertextualidade, a metalinguagem, os neologismos, entre outros.

2 - Resenha de Aninhanha

Encontrada no lixo, quando bebê, a narradora levou uma vida desagradável, à cata de lixo, em companhia da catadora que a havia encontrado. Vivia num tugúrio mal cheiroso e impróprio, sendo que todas as noites, antes de se recolher, era obrigada a perambular pelas sombrias palafitas, exposta ao perigo, enquanto sua mãe postiça, chamada Aninhanha, dava seu corpo aos brutos, em troca de moedas. A menina, ainda adolescente, arriscou-se às malfadadas tentativas de estupro por parte do comerciante a quem havia sido vendida, pela mãe, por trinta moedas. Vítima de uma série de desgraças, ela relata a traição da mãe, ao enviá-la, à noite, sozinha, a um poço distante, buscar água. Pega de surpresa, e consumado o violento ato, viu-se vítima do determinismo biológico, com gravidez involuntária, desaguada num insano ato de infanticídio. A seguir, relata o enforcamento de Aninhanha, a cova vazia, na qual havia enterrado o bebê ainda vivo, os olhares e “regalares” do populacho, até a primeira pedra, nela atirada. “Ainda me lembro quando me bateu em pleno rosto a primeira pedra (A,96)”. Supõe-se uma tentativa de linchamento pelo fato de ter enterrado vivo o recém-nascido. Recolhida num hospital ou sanatório, acamada, relata sua vida a um senhor, tentando justificar, a si mesma, o acontecido.

Na primeira linha do romance encontra-se o prenúncio do fim. A fabulação começa com “Conto consumados casos”, oração repetida três vezes na última página do livro.

Inicialmente, a personagem anônima, do sexo feminino, quer ser ouvida e se justificar de um ato criminal. Sente necessidade de falar, mesmo que seja sozinha. Faz questão de passar a vida a limpo, para entender os “aconteceres”. Como poderia ter culpa? Tudo aconteceu à sua revelia, envolto em nevoento torvelinho. Ela precisa se expor totalmente, mesmo que seja a si própria, para entender e justificar seu ato insano, assim como a inutilidade da vida. Seu próprio julgamento importa-lhe mais que o alheio. Quer enxergar tudo nitidamente antes da travessia para o além.

Vejamos alguns excertos iniciais do romance, contidos nas duas primeiras páginas.

[...] Ouça e vá julgando como lhe aproveite [...] verá que bem posso justificar-me [...] o senhor me não peça explicações [...] eu preciso recolher meus cacos, esta história é a última parte de mim [...] prossigo por necessidade minha [...] falarei sozinha durante toda a noite. É provável que nada exista amanhã, encontrarão aqui um embrulho repugnante sem graça de olhos inutilmente postos no teto. Exaurida. (A,11-12)

Mais adiante, percebe-se que seu processo de redenção é, ao mesmo tempo, uma preparação para a morte, da qual ela vislumbra a iminência, e faz questão de narrar tudo o que lhe acontecera antes da “travessia” para a grande incógnita.

O senhor me perdoe lá consigo as exposições de minhas impressões. Convenho que as exponho com minha muito particular ótica, mas esta história é minha, e a arranco do peito inevitável. Eu preciso juntar meus cacos, é preciso recompor-se, ajeitar a casa para o que será a travessia. Depois disto serei outra. Assim aconteceram as coisas. O dito e o ocorrido. O que não se diz não há. O que não há passa a haver depois que dizemos. Não posso ser infiel aos fatos todos que compõem esta narrativa (A,55)

Ao final, após ter rememorado sua vida miserável (em todos os sentidos), sente-se exaurida, mas em paz. Depois de reviver cada tormento, sente-se absolvida. Não se vê criminosa. Pelo contrário, é vítima de uma vida sem sentido e miserável à margem da sociedade. Uma mulher anônima, sem documento, de origem desconhecida, reificada pelo determinismo social e genético, vendida e usada como coisa descartável. Vejamos alguns excertos das duas últimas páginas:

Pronto. Disse-lhe tudo [...] não me importo se disse tudo. Nem de dizer o restante [...] Aqui me tem exposta. E então? Vá embora [...] acenda um cigarro, meu caro, e ganhe seu caminho. Eu existo e tenho consciência de existir agora sim. Completa. Um mosaico mal feito. Agora me encontro em paz. Em paz. Essa narrativa é minha e minha e minha. Só. Acenda um cigarro, meu caro, e ganhe seu caminho, a sua noite apenas começa. É dia ou noite? Enfim a minha noite será terrível. Amanhã o talvez a travessia, é possível que me aqui encontrem dura e fria. De que adiantaria me condenar se eu própria me absolvo? Ah a justiça dos homens ah. Me rio. Não se esquecer que é tempo de margaridas. Consumados casos. (A,96)

3 - Dialogismo

Por meio de fragmentos da vida, guardados na memória, a narradora anônima, acamada supostamente num hospital, “...um dia ganho sem trabalho, um hospital qualquer...(A,15)”, tenta, a duras penas, fazer a leitura do que se passou, narrando sua vida a um interlocutor também anônimo, que não toma parte no diálogo. O discurso direto configura uma situação dialógica singular em Aninhanha, assim como em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, visto que o interlocutor silencioso não participa do diálogo. A alteridade em forma de silêncio é uma presença importante, pois o silêncio faz parte do discurso. Não há troca de falas, mas há o intervalo, o reconhecimento da alteridade, o adiamento reflexivo da fala reiterada. Pode-se dizer que se trata de um “diálogo monologado” devido ao silêncio do interlocutor. Por outro lado, pode-se dizer que se trata de um “monólogo dialogado”, considerando as aparentes intervenções do interlocutor, expressas na fala da narradora. O diálogo normal não se concretiza, mas concretiza-se um diálogo singular por meio dos ecos de uma das falas. Na primeira página isso fica bem claro.

Mas não me esqueço, meu caro, que o inexistido começa a existir quando cogitado [...] ouça e vá julgando como lhe aproveite [...] Mas como não me é possível obter respostas, ou pior, como me não é possível saber se o senhor está sendo sincero [...] verá que bem posso justificar-me. É ir ouvindo enquanto não lhe desata o riso. Também é verdade que pode o acaso de seu enfado e consequente fuga deixar-me aqui falando sozinha [...] poupe-se de me assegurar o contrário (A,11)

O senhor não me peça explicações [...] aborreço-o. Eu nunca tive nunca quem me ouvisse, é possível que o irritem com a minha narrativa emperrada as minhas naturais dificuldades. Mas advirto: estamos apenas no princípio das dores, muita lama está por vir. Não posso amarrá-lo a ouvir-me [...] volta amanhã? [...] não posso evitar que [...] deixe de cerimônias meu senhor, não quero aborrecê-lo. Acha interessante que eu prossiga? Permita-me o riso, esse inimigo. Sejamos francos: a quem poderá interessar a ruminação, a danação dos tempos de uma mulher inútil como eu? Seja como for isso é lá com o senhor, prossigo por necessidade minha (A,12)

Está dizendo inúteis coisas, não tente animar-me, avivar o fogo de brasas mortas [...] perdi a noção do tempo no mistério da divagação... (A,13)

Então o senhor perguntaria que importância teria o embrulho deixado no vago da noite...(A,14)

O senhor que me escuta me entenda... (A,16)

Estou convencida de que lhe desinteressam estes fatos, mas se quer compreender o tudo é preciso ouvir dos meus inícios as impressões que me vieram fazer assim como sou mulher absurda uma nenhuma várias. (A,18)

A protagonista nunca conseguiu manter um diálogo com sua mãe postiça Aninhanha, que se mantinha sempre calada, com olhares oblíquos. Nunca olhava nos olhos da jovem, nunca fazia um gesto de carinho. Elas se comunicavam mais por gestos e resmungos, talvez pela notória carência lexical. É interessante que uma vida inteira, sem diálogo, seja narrada justamente em forma dialogal, como Riobaldo, em Grande Sertão: veredas. Trata-se de um discurso meio psicanalítico, por meio do qual o indivíduo tenta se conhecer melhor, entender a vida e o mundo.  O texto de Pedro J. Nunes se aproxima sobremaneira da melopeia Roseana, de modo que, às vezes, tem-se a impressão que a fala é de Riobaldo e não da “loucamansa”.

É possível que muitos fragmentos dela (de Aninhanha) me venham como asas no decorrer da penosa narrativa ligados a fatos diversos que me compõem. Porque uma coisa é inegável afinal: não me componho sem ela que tem a existência dela atrelada à minha no mais profundo. (A,20)

Após demonstração do diálogo da narradora com o interlocutor anônimo e sem identificação, seguem algumas citações que demonstram a falta de diálogo entre a narradora e sua mãe, o que engendra a solidão de ambas, sempre fechadas num mutismo constrangedor; olhares evitados, enviesados, ausência de gestos de carinho, de palavras de conforto, tudo isso fazia parte daquele estilo de vida.

...sozinha consigo e seu cigarro a ruminar mágoas a respeito de tudo de que  nunca falava de que nunca manifestava um sinzinho. Não me lembro que tenha reclamado uma vez das suas angústias lá dela, gostava era de sofrer sozinha como se no fim de tudo tivesse extraído lições de solidão imposta. (A,10)

...nunca soube me dizer nas raras ocasiões em que falou [...] Aninhanha eu nunca lhe soube o nome nem o número, aprendi a chamá-la e a pensá-la assim anônima. Ela nunca falou da parte que coube à angústia daquele dia, não tinha tempo nem disposição de falar, quase nunca me falou esse tempo todo. (A,15)

...nunca soube me dizer nas raras ocasiões em que falou [...] não tinha tempo nem disposição de falar, quase nunca me falou esse tempo todo. (A,16)

Nunca nem uma vez me olhou nos profundos dos olhos. Evitava-me como se algum pensamento inconfessável se descortinasse caso nossos infinitos se encontrassem nas retinas [...] rosnava qualquer ameaça, recolhia-se em seu silêncio [...] os olhos distantes que nem de parecer ali. Flutuavam duas bolinhas pretas nas sombras. Recorda-me muito o silêncio do quarto escuro, a janela muito pequena de pouca luz e as tábuas pretas agarradas de fuligem. (A,17)

Aninhanha em sua calma de abandono e de silêncio e silêncio e silêncio. (A,19)

...o cabisbaixo silêncio de Aninhanha. (A,24)

...passou a haver entre mim e ela um acordo calado. (A,28)

...nunca tive vontade de ser amável ou sociável. Calada. Fumaça. Só irremediavelmente só. [...] Aninhanha e eu só o necessário nos falávamos, economizando palavras, dizendo por gestos ou por sons guturais ininteligíveis o que nos não dizíamos verbalmente. (A,30)

Uma cumplicidade calada [...] nosso relacionamento era assim, lacônico. Absurdo. (A,31)

Ou talvez lá com seus pensamentos de solilóquios sussurrados de dentro para dentro remoendo ódios... (A,36)

Cabeça cheia de silêncio a zunir. (A,42)

4 - Tendências artísticas

As várias tendências artísticas sempre penderam ora para a perfeição helênica, apolínea, marcada pela primazia da razão, ora para a imperfeição bárbara, dionisíaca, marcada pela primazia do instinto. Nesse movimento pendular, ocorrido ao longo da história, encontram-se elementos mutáveis, assim como elementos de fixidez (invariabilidade relativa), cuja perpetuação foi rotulada de “constante universal”, pelo teórico espanhol Eugenio d’Ors. (1822/1954).

Considerando as duas constantes, o classicismo se encaixa na primeira, com uma estética que prima pela harmonia, pelo equilíbrio e pela simetria. O barroco, ao contrário, prima pela desarmonia, pelo desequilíbrio, pela assimetria. Ambas as tendências são legítimas, pois a concepção do Belo é relativa. Cada uma tem presença manifesta e dominante em certas ocasiões; noutras mantêm-se subordinada ou oculta. “O que hoje se tenha relegado ao sótão, voltará a ocupar o trono; por baixo das cinzas respira o fogo e qualquer vento favorável reanimará as chamas.” (d’ORS, 1928, 62).

Para exemplificar, Eugenio d’Ors faz uma analogia com o mundo animal: o leão, o gato e o tigre são espécies de um mesmo gênero, o dos felinos (félix). Da mesma forma, há também um gênero comum em séries variadas de conhecimentos históricos mais ou menos afastados cronologicamente entre si. Seguindo essa linha de pensamento, estabeleceu um denominador comum (um gênero) para uma série de correntes estéticas ocorridas ao longo dos séculos: o gênero Barrocchus, para o qual estabeleceu mais de vinte ramificações como, por exemplo, o barroco gótico, o românico, o maneirista, o rococó, o romântico, o simbolista, o neobarroco, e assim por diante.

Nas duas tendências pode haver muitas variações. A concepção realista é uma variação da primeira (classicista); a simbolista, ao contrário o é da segunda (barroca). Tais tendências estéticas acontecem ao longo dos séculos com certas ampliações, ou seja, com as devidas atualizações. Por exemplo, o gosto pela estética barroca, na contemporaneidade, não tem a mesma carga político-social-religiosa do barroco histórico do Século XVII, época em que reinavam o absolutismo político (monarquias) e religioso (Contrarreforma, Inquisição). Segundo o pesquisador, tem-se registro de que essas tendências ocorreram alternadamente desde antes de Cristo. Em qualquer época, num mundo conturbado, a expressão artística perde a propensão ao ideal clássico de beleza. Na era moderna o anticlassicismo manifestou-se nas décadas de 1520-1560; 1800-1830; 1880-1950 e na virada do milênio durante o pós-modernismo, do qual há uma vertente que chegou a ser rotulada de neobarroco.

Apesar de haver preponderância de uma sobre a outra, as duas tendências muitas vezes se imbricam e podem manter uma convivência pacífica em quaisquer épocas. Em qualquer sociedade, dentro do mesmo tempo e espaço pode haver indivíduos mais afeitos a uma ou a outra tendência.

O filósofo e crítico de arte italiano Gillo Dorfles, em seu livro Elogio da desarmonia (1910) afirma que é “muito mais admissível e óbvio, que seja o homem vulgar, o não o artista, a ser propenso ao equilíbrio, à harmonia, à consonância – ou seja, a uma condição de estagnação e de pouca informação – enquanto é mais provável que o artista ou o perito de uma determinada arte encontre satisfação – acréscimo informativo – na procura do desarmônico.” (sic) (DORFLES, 1986,105)

5 - O neobarroco

Para evitar possíveis confusões conceituais, gostaríamos de deixar claro que o termo neobarroco aqui é usado para designar a grande recorrência de traços barrocos presentes na contemporaneidade. Apesar do prefixo “neo” designar normalmente repetição ou reciclagem, o termo “neobarroco” utilizado primeiramente por Gillo Dorfles e retomado na década de 80 por Omar Calabrese não designa uma retomada do barroco dito “clássico”. Trata-se do gosto predominante de um tempo confuso e fragmentário, nas últimas décadas do século XX. Tal gosto se alastra a muitos fenômenos culturais nos diversos campos do saber. Na Literatura, observam-se: narrativa caótica, fragmentada, preciosismos, rebuscamento verbal, jogos de palavras, fusão de prosa e poesia, aproveitamento da materialidade fônica e semântica de cada palavra, utilização de cultismos, arcaísmos e coloquialismos, gosto pelas figuras de retórica, metalinguagem, intertextualidade, entre outros. Os textos neobarrocos, assim como a obra em questão, geralmente apresentam certa dificuldade na leitura. A reação dos leitores oscila entre o abandono do texto e o enfrentamento do desafio. Pedro J. Nunes troca de sufixos, deriva verbos de substantivos e de adjetivos (e vice-versa), cria neologismos e explora peculiaridades orais para seu fazer literário. A indefinição, a obscuridade, a profusão de detalhes o embaralhamento dos fatos, a clareza relativa, a aparência caótica permeiam todo o romance. A temática da busca da identidade e da crise do sujeito, presente em Aninhanha, é muito recorrente nessa corrente estética.

Em seu ensaio Barroco-neobarroco (1972), Severo Sarduy desenvolve sua própria teoria acerca do neobarroco como arte do destronamento e da discussão, cuja linguagem prima pelo desperdício, pela superabundância, pela artificialidade e afetação, e cuja estrutura reflete a desarmonia, o desequilíbrio e a ruptura da homogeneidade. Especificamente na literatura, segundo ele, a denotação e a linearidade dão lugar ao gosto pela ambiguidade e pela difusão semântica. A frase, às vezes, torna-se incorreta pelos incompatíveis elementos alógenos, pela falta de limites na subordinação e pela perda da concordância.

6 - A busca da identidade

6.1 - Filosofia do absurdo

Abandonada em si mesma, desnorteada, imersa em um processo de reificação e desumanização, a personagem anônima tenta entender a vida, as relações sociais e o mundo, dentro de seu restrito universo que engloba apenas catação de lixo diurna e as andanças noturnas pelas palafitas onde mora, a espera da saída do último cliente de sua mãe meretriz . Em sua eterna busca ela se debate, às vezes, com o tédio do cotidiano, “na manhã seguinte e em todas as manhãs o mesmo ofício, as mesmas calçadas, as garrafas e a dor, à tarde o mesmo depósito” (A,65), com insignificância do ser “O meu existirzinho era de universo exíguo de na exiguidade caber. Cheio de sonhos quebrados e caquinhos e pó” (A,87) e com a pulsão de morte:

Ânsias de inexistir. Numa daquelas noites eu me sentei nas palafitas e cogitava na brisa úmida dos noturnos da possibilidade de chegar a termo a angústia, jogar na água podre sob cujos debaixos as farpas das árvores cortadas as minhas borboletas e margaridas, libertá-las na carne rasgada. A maré alta. Era atirar-me e esquecer o existido e o por existir, concluir no sangue a existência... (A,71)

Ela se diz mulher-absurda e de fato o é, por ser questionadora, mas para ela tudo é absurdo: os seres, as coisas, o mundo…, nada tem sentido. Sua busca de identidade se mescla à sensação de efemeridade, à filosofia do absurdo e ao niilismo (ausência de valores tradicionais, falta de sentido e de utilidade para a vida), tudo misturado, incompreensível, envolto em “névoa fumarenta”. Vejamos algumas citações que abrangem tudo isso:

Confesso de que não há de que se possa apalpar a razão desta vida coberta de brumas e regurgitada com dificuldades pela mente turva. Aliás creio mesmo que enquanto primeira pessoa absurda não passei não passo nem vou passar de uma notícia vaga a modo de sonho, um sonho enfurecido, alguma coisa vaga e fumarenta rapidamente diluída. (A,11/12)

…é névoa, onde o começo de uma, várias ou nenhuma vida aqui dentro gritando. (A,13)

...comecei a ter noção mais justa das coisas dos fatos todos retalhos de um tecido absurdo [...] Assim foi assim fui inexisto. Ia adquirindo sozinha minhas impressões do mundo. (A,16)

...se quer compreender o tudo é preciso ouvir dos meus inícios as impressões que me vieram fazer assim como sou mulher absurda uma nenhuma várias […]Não se angustie que não haja respostas que possa dar. Seria absurdo abrir as cortinas absurdo o real. Os tempos estão longe-esquecidos cobertos de poeira, a névoa que me toma empurra-os para a escuridão louca… (A,18)

Bastante eu de mim um pronominho absurdo. Besta. Nossa rotina era muito simples, estar no mundo…(A,26)

Aninhanha de quatro com o bruto agarrado feito um diabo-ruim um cavalgador dos infernos montado em cavalo absurdo. (A,28)

Íamos embora cruzando nas rodovias absurdas com cães absurdos e homens todos absurdos, íamos nos entregar à noite medonha. (A,30)

...nosso relacionamento era assim, lacônico. Absurdo. (A,31)

Desnecessário reafirmar a insinceridade do narrador quando de si mesmo eu primeira pessoa fronteira de abismal absurdo. (A,49)

O senhor é teimoso: que diabo, a vida é minha, todas as vidas. Inclusive esta. Eu primeira pessoa absurda. Eu não existo. E então? A vida é mais nada ada adinha de merda, é segundo o evangelho de cá os meus critérios. (A,60)

O tempo corria ampulheta absurda. O tempo medido é apenas uma cadeia em que os fatos se encaixam. (A,61)

Eu sei do que me resta enquanto eu. E do que me restou. Catarse. Um tiro no escuro a poética absurda. O lixo e seus dons. Nada. (A,73)

Lavei-me no poço e livrei-me de mim morta. Primeira pessoa absurda. Eu não existo. Primeira pessoa do plural. Sou a partir do momento que. O poço de vermelinda lama. (A,90)

Eu sou nada e não existo. O senhor sabe que minha natureza á volatil. Um sonho fumarento. Nada. Um existir de papel. (A,91)

Segundo a filosofia do absurdo, o absurdo acaba com a morte. Portanto, a mulher-absurda, questionadora, inquieta e solitária faz questão de passar a vida a limpo, ao juntar todos os cacos e formar um mosaico que, embora mal feito, encontra-se concluído, antes de sua travessia para a “desvida”: “eu existo e tenho consciência de existir agora sim. Completa. Um mosaico mal feito. Agora me encontro em paz. Em paz. […] Amanhã talvez a travessia, é possível que me aqui encontrem dura e fria.” (p.96)

Para o filósofo Albert Camus, “L’absurde naît de cette confrontation entre l'appel humain et le silence déraisonnable du monde”, ou seja, o absurdo nasce na confrontação de duas forças antagônicas: o apelo humano para conhecer a razão de sua existência  e a falta de resposta para tal questionamento. A seu ver, o ser humano (tal qual a “loucamansa” de Aninhanha) vive num mundo cujo sentido ele desconhece, do qual ele ignora tudo, inclusive a razão de ser. Tal apelo seria então a busca de uma coerência. Na opinião de Camus, há três possibilidades de busca de coerência, todas elas inconsistentes:

A primeira encontra-se nas religiões. Elas tentam definir as origens, criar sentido de tudo, dentro de perspectivas divinas; todavia, o homem absurdo (o livre-pensador) só aceita respostas dentro da perspectiva humana.

A segunda maneira de injetar sentido à vida seria fazer projetos e estabelecer objetivos, mas tudo pode desmoronar com a morte. Na verdade, para o homem absurdo, o futuro inexiste. Só se pode contar com o momento presente.

A terceira maneira de fazer calar esse tipo de questionamento seria o suicídio, mas essa possibilidade é excluída porque com a morte o absurdo deixaria de existir. Ele não pode deixar de existir pelo fato de ser gerador de energia; a paixão do ser absurdo é a exaltação da vida, é a energia vital. Diante do exposto, a confrontação entre o apelo humano de coerência e o silêncio irracional do mundo é uma dialética que permanece inconclusa. Tais forças antagônicas não podem ou não devem engendrar uma síntese, que anularia a geração de energia vital. Portanto, continuaremos viventes absurdos, num mundo absurdo.

6.2 - Reificação

A narradora, sem existência oficial, e, por conseguinte, sem direita à cidadania, cresceu comendo sobras do lixo e passou sua vida inútil acompanhando sua mãe na catação dos dejetos descartados pela sociedade de consumo, vive marginalizada, numa vida subumana. Sem nenhum contato social, acostumada ao mutismo e à falta de carinho da mãe adotiva, que nunca a olhava nos olhos, acabou se habituando ao silêncio, à solidão e à vida abestalhada. Sente-se, às vezes, como coisa negociável, como se vê na citação abaixo, quando sua virgindade é vendida ao homem do depósito de garrafas.

Ele carregava o monstro pequenino-amortalhado o insignificante monte de carne e sangue organizado que não protestava, mudo. (A,13)

(ao abandonarem o bebê) Depositaram no chão o fardo sozinho na friagem e ganharam novas rumas os pés e as mãos limpinho-aliviadas. O senhor deveria da pergunta da importância que o embrulho. Importância não tem nunca teve abandonado no onde agora tem um gramado verde-verdinho debaixo do humano sol humano. (A,14)

...aquele meio ensanguentado embrulho eu continha uma criança arroxeada... (A,15)

...comecei a ter noção mais justa das coisas dos fatos todos retalhos de um tecido absurdo... (A,16)

De ficar assim tão só esquecida num canto como um ser inanimado é verdade que acabei me tornando irremediavelmente só. (A,22)

…entre eles e suas intenções de eu um pedaço de qualquer coisa negociável [...] colocou-me um vestido que tinha guardado do lixo. Um vestido escandaloso. Ajustou-o. Um vestido muito curto e apertado, as minhas femininas formas mostrando-se ao mundo em seus encantos ao mundo desencantado.  [...] como as carnes dos açougues eu explícita, as carnes de primeira à vista do freguês [...] me levaria ao negociante oferecendo a mercadoria preciosamente guardada e agora com um destino sabido e sonhado. O homem olhou-me muito assanhadamente de maneiras as ancas de vontade de porco de enlamear-se nos meus deleites [...] mercadoria descartável de uso e desuso [...] os olhos daquele homem postos à maneira de proprietário...(A,67)

Eu estava sendo vendida alheia de meus desejos e vontades. (A,68)

...falares e falares cochichados de compra e venda: eu pendurada nos canos do açougue mercadoria exposta. (A,82)

(após o estupro) por fim cobriu-me o manto de nada mais ser consciente. Fantoche. Era como eu me sentia. (A,90)

(Aninhanha bêbada) Levavam-na para o mato e ela voltava de lá cambaleante, fazendo macaquices no meio das palafitas. Parecia uma marionete molambenta. (A,91)

...já não prestavam a tenção em mim imprestável ao coito, de barriga. (A,92)

6.3 - Zoomorfismo

A narradora, no mais das vezes, sente-se como bicho, desde que foi abandonada no lixo, quando bebê.

Um homem uma mulher os pais do bicho louco bicho inútil bicho necessário. Ele carregava o monstro pequenino-amortalhado o insignificante monte de carne e sangue organizado que não protestava, mudo. (A,13)

...um gramado cuidadinho de jardineiro para ocultar de vez o lixo e o bicho. (A,14)

Ela (Aninhanha) tinha as ancas firmes o traseiro generosamente cheio [...] atração dos brutos , animais abestalhados de cio. (A,19)

(Uma criança loura, de olhos azuis) olhou-me como quem olha um exemplar de bicho exótico diferente dos seus bichinhos de pelúcia. Depois de olhar-me muito detidamente agarrou de mim os cabelos sujos sacudindo-me como uma boneca inerte [...] afastaram-se do bicho que sempre fui. Um bicho de fumaça [...] Aninhanha rosnou entre dentes besta e o olhar em mim besta, o olhar lateral... (A,26)

Na juventude, continua se sentindo como bicho, e vendo também como bichos aqueles com os quais convive.

...fragmentos-fragmentada. O senhor está diante de um bicho fragmentado, dividido em cacos semeados na indiferença. (A,16)

Aninhanha! Aninhanha! Que bicho esquisisto era Aninhanha. (A,15 e A,18)

(Aninhanha) ...usava a cama mais para semvergonhices troca de dracmas [...] tinha as ancas firmes o traseiro generosamente cheio [...] atração dos brutos, animais abestalhados de cio. (A,19) 

7 - A estética do fragmento

As poéticas classicistas tendem à valorização do cânone, ao passo que as poéticas mais recentes valorizam a fuga à norma e ao dogma. A poética da produção e da recepção do fragmento rompe com o “inteiro” sem se preocupar com sua reconstrução. A preferência anticlassicista valoriza o pormenor, o fragmento, a quebra da continuidade e da integridade e, ao mesmo tempo, privilegia a fruição das partes autônomas da obra. Na totalidade de uma obra fragmentária relevam-se a irregularidade e a falta de sistematicidade. Não se busca mais o ponto de partida nem o de chegada, e sim a fruição da caminhada. Segundo Calabrese, “A estética do fragmento é um espalhar, evitando o centro ou a ordem do discurso” (CALABRESE, 1988, p.101). A estética do fragmento em Aninhanha, assim como em grande parte da produção literária do século XX, contraria os valores canônicos. Calabrese associa a autonomia do fragmento ao declínio dos grandes sistemas ideológicos.

A fragmentação em Aninhanha transparece no conteúdo, na forma e na identidade da protagonista. “Assim vivi meus dias eu arrancada daqui eu-ela mulher absurda uma nenhuma várias.” (A,73) Na forma, consiste em fragmentar e reconstituir os elementos formadores dos vocábulos e das orações como a montagem de um mosaico. Esse procedimento contribui para a maior flexibilidade e expressividade do vernáculo. Há incidência de frases inacabadas. A narradora passa a vida tentando juntar seus próprios cacos, em busca da identidade, na montagem de seu próprio mosaico. Ou seja, por meio de fragmentos, pescados pela memória, ela busca, a duras pena, o entendimento de si e da vida. O leitor, por sua vez, vai se familiarizando com as peças a serem montadas (palavras soltas, frases soltas, interrupções frásicas, inversão na ordem habitual das palavras, ambiguidades...). Cabe a ele completar o sentido do que foi obliterado pelo autor, assim como cabe a ele imaginar as intervenções do locutor silencioso.

A fragmentação da narrativa coaduna-se com a constante hesitação do narrador. Nas sequências fragmentárias, a narrativa mostra uma visão sempre parcial de uma realidade total, deixando entender que fica ainda muito por dizer. Os termos “cacos”, “mosaico” e “fragmento” e outros termos do mesmo campo semântico aparecem reiteradamente na fala da protagonista:

Eu rumino cacos. (p.11)

...baseando-me em fatos de caquinhos recolhidos [...] pedaços que vim juntando na noite da dor [...] eu preciso recolher meus cacos, esta estória é a última parte de mim [...] Se assim penso, mesmo baseando-me em fatos vagos de caquinhos recolhidos [...] nos pedaços que vim ajuntando na noite da dor, nas horas ruminantes dos últimos tempos [...] eu preciso recolher meus cacos, esta estória é a última parte de mim. (A,12)

Fragmentos-fragmentada. O senhor está diante de um bicho fragmentado, dividido em cacos semeados na incoerência. Aqui justifico que essa vida vivi sem motivos a poética vida dos trapos assim insistindo sem vontade própria como quem vive vida de expiação vida carregada vida de carregação [...] comecei a ter noção mais justa das coisas dos fatos todos retalhos de um tecido absurdo... (A,16)

A consciência que tenho daquelas coisas está bastante fragmentada, mas para o que preciso agora é suficiente. Porque é dos cacos que me recomponho este mosaico enfurecido. (A,19)

Na verdade nunca me foi fácil montar este mosaico [...] A solidão me ensinou a necessidade deste mosaico. Aprendi a ambos. (A,21)

Esta estória é o último caco de mim este mosaico absurdo mulher nenhuma várias. (A,24)

A minha posição no carroção, posição de um trono de cacos... (A,27)

Eu compunha acontecimentos, no meu mosaico juntava os cacarecos que possuía de minhas anteriores observações. (A,43)

Eu preciso ajuntar meus cacos, é preciso recompor-se, ajeitar a casa para o que será a travessia (a morte) [...] os cacos se espalham pelo chão e é precisos recolhê-los. (A,55)

O que essa narrativa penosa representa? Uma explosão? Os cacos voaram longe, eu me estilhacei. Necessário pois o recolher. Caco a caco. Um mosaico. Um todo enfurecido. (A,64)

...venho juntando peças quebradas largadas no chão à mercê do recolher no meio do lixo, vim compondo a narrativa e decidi que assim se fizeram todas as coisas. (A,65)

Os cacos voaram longe, eu me estilhacei. Necessário pois o recolher. Caco a caco. Um mosaico [...] eu, que nunca vida e que esta vida arranco em mosaico fragmentado, juntei cacos na incoerência e compus a narrativa torta. (A,73)

O meu existirzinho era de universo exíguo de na exiguidade caber. Cheio de sonhos quebrados e caquinhos e pó. (A,87)

8 - Labirinto

Labirinto é uma das muitas figuras do caos. No século XX, voltou a atração barroca pelo labirinto, tanto na Literatura quanto nas Artes em geral. A “loucamansa” peregrina no labirinto das palafitas. “A palafita é a fronteira do mundo. Onde tudo e nada. ”(A,84) O ato de caminhar pelos dédalos de um labirinto pode corresponder aos questionamentos existenciais do homem absurdo. Num labirinto “palafítico” a narradora anônima encontra seu Minotauro na pessoa do homem do depósito, também anônimo. É por ele subjugada e violentada, o que engendrou uma vida em seu ventre, e, antagonicamente, sua morte em vida.

Sabe-se que há três tipos de labirinto: o grego, com entrada e saída, o maneirista, com entrada e sem saída, e o labirinto moderno (rizomático), o da “loucamansa” sem centro nem periferia. Neste, cada segmento pode-se ligar a outro, tornando possíveis todos os percursos. O que prevalece é o fato de perambular a esmo, à espera do passar do tempo. “Somos nós que traçamos nossas veredas. O abismo é para quem não [...] o existir e o existir assim assim.” (A,5)

A escritura de Pedro J. Nunes é também labiríntica; um ir e vir aparentemente desordenado (Discordia concors), no qual o leitor se deleita a perambular os  olhos graças a um estilo peculiar, à escolha lexical, enfim, graças a uma escritura milimetricamente trabalhada, na qual nada é aleatório: frases inacabadas, palavras soltas, falta de pontuação, frases ambíguas ou sem sentido, subversão gramatical... Nas páginas iniciais, o leitor sente falta de um fio condutor; não consegue identificar o narrador. Sabe apenas que se trata de uma mulher, que menciona um embrulho, sem importância alguma, deixado no lixo; embrulho esse caracterizado como “fardo”, “bicho louco bicho inútil bicho necessário”, “monstro pequenino – amortalhado”, “insignificante monte de carne e sangue organizado.” Mais à frente há uma identificação mais clara. No ensanguentado embrulho, havia uma criança arroxeada. Nas páginas seguintes pode-se apreender, aos poucos, que, dentro dele estava a própria narradora, abandonada quando bebê, e encontrada por uma catadora de lixo, de nome Aninhanha.

Ao longo da narrativa, há frases reiterativas que, como num labirinto, provoca no leitor a sensação de já ter passado por aquele local (déjà vu). Aos poucos, ele vai se embrenhando no universo da narradora e a acompanha em seu ir e vir a esmo, tanto nas palafitas quanto na vida. Como ela mesma diz, uma mulher-absurda, num mundo absurdo.

9 – Intertextualidade

A intertextualidade é uma constante na literatura universal, em todos os tempos, e mais intensamente na literatura contemporânea. Todo texto nada mais é que o resultado de inúmeros textos assimilados pelo autor, ao longo de sua vida. Toda obra está impregnada de conhecimentos adquiridos por meio de textos anteriores, mesmo que não haja vestígios explícitos, como citação, paráfrase, alusões, paródias, uso de aspas, itálico ou outros recursos linguísticos. O intertexto pode ser proposital ou não. Às vezes, ele não é percebido pelo autor, mas é reconhecido pelo leitor. No caso de Aninhanha, há uma intertextualidade explícita e proposital com a obra Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa: A metalinguagem, o estilo caótico e fragmentado, a subversão sintática, um narrador que é ao mesmo tempo protagonista da história e crítico da própria narração, um dialogismo com um suposto interlocutor que tem presença marcante, mas permanece mudo, a busca da identidade, a indefinição e uma infinidade de intertextos que não serão aqui abordados, pelo fato de já terem sido focalizados no ensaio “Aninhanha e Grande sertão: veredas que se cruzam”, da professora Maria Tereza Ceotto. Para quem está habituado à narrativa de Riobaldo, de Grande sertão: veredas, há momentos em que se tem a impressão de que as falas da narradora de Aninhanha se confundem com as dele. Para ilustrar o que foi dito seguem algumas comparações entre as duas narrativas:

Indefinição temporal

Narrador de Grande sertão: veredas (GSV)

Comigo as coisas não têm hoje e ant’ontem amanhã: é sempre (GSV,301)

Os fatos passados obedecem à gente; os de vir também. Só o poder do presente é que é furiável? Não Esse obedece igual – e é o que é (GSV,301)

Narrador de Aninhanha (A)

Foi ontem anteontem ou há muitos anos que foi pode nem ter sido. (A,14)

Que dia é hoje? É dia? É noite? Eles virão hoje ou amanhã? Tanto faz. Hoje ou amanhã. Ou nunca. (A,92)

Indefinição espacial

Esses gerais não têm tamanho [...] o sertão é do tamanho do mundo (GSV,1)

Divago. Nunca soube o local. (A,14)

O narrador incita o interlocutor a continuar a audição

Se soalerte o senhor, que estamos descambando: o senhor mesmo se prepare: que para fim terrível, terrivelmente. (GSV,494)

O senhor vá ouvindo. Outras artes vieram depois. (GSV,126)

Aborreço-o. Eu nunca tive nunca quem me ouvisse, é possível que o irritem com a minha narrativa emperrada as minhas naturais dificuldades. Mas advirto: estamos apenas no princípio das dores, muita lama está por vir. (A,12)

Importante presença do interlocutor misterioso

O julgamento? Aquilo para mim foi coisa séria de importante. Por isso mesmo é que fiz questão de relatar tudo ao senhor, com tanta despesa de tempo e miúcias de palavras. (GSV,248)

[...] ouça e vá julgando como lhe aproveite [...] Mas como não me é possível obter respostas, ou pior, como me não é possível saber se o senhor está sendo sincero [...] verá que bem posso justificar-me. (A,11)

Medo de perder o interlocutor

De contar tudo o que foi, me retiro, o senhor está cansado de ouvir narração. (GSV,265)

Não posso amarrá-lo a ouvir-me [...] volta amanhã? [...] não posso evitar que vá [...] deixe de cerimônias meu senhor, não quero aborrecê-lo. (A,12)

Final da narração

Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi. (GSV,76)

Pronto. Disse-lhe tudo. O que fazer da existência a existida que de mim tirei? (A,95)

Aliterações

E medo, meu, medi muito maior. (GSV,56)

...bobeia disso, a basba do basbaque. (GSV,247)

Besta de besta eu basto. Aliteração de bosta. (A,26)

...doido, doidinho de dó e dor. (A,48)

Ressonância do eco ou repetição

Cavalão lão lão Pôs pernas para adiante. (GSV,378)

Nu, nu, feito perna de jaburu. (GSV,211)

A vida é mais nada, Ada, adinha de merda. (A,45)

A vida a vida e a vida. O existir apenas existir. Sem fim. Sem espírito. Sem hálito. (A,40)

Ludismo lexical – neologismos

(GSV) Extravagável – desexistir – desatravessar – desouvir – deslei – prostitutriz - antesmente – acontecências - esquipático

(A) Entrável – despresenciar – inexplicar – desprestável – desajetivado – divaguentos – soliloquiosa – aconteceres - avermelinda

Metalinguagem

Contar é muito dificultoso. (GSV,159)

Essas coisas se passaram tempos depois. Talhei de avanço em minha história. O senhor tolere minhas más devassas no contar. É ignorância. Eu não converso com ninguém de fora, quase. Não sei contar direito. (GSV,171)

Falo por palavras tortas. (GSV,432)

Sei que estou narrando errado, pelos altos. Desemendo [...] contar seguido, alinhavado só mesmo sendo as coisas de rasa importância. (GSV,82)

O início é sempre dificultoso. (A,12)

As falhas se não me expresso bem, não exponho finamente as ideias, é por inaptidão. Uma cegueira grossa.  (A,49)

...juntei cacos na incoerência e compus a narrativa torta. (A,73)

O que essa narrativa penosa representa? Uma explosão? Os cacos voaram longe, eu me estilhacei. Necessário pois o recolher. Caco a caco. Um mosaico. Um todo enfurecido. (A,64)

Busca da identidade

O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui – porque não sou, não quero ser. (GSV,187)

Eu, quem é que eu era? [...] de ninguém eu era. Eu era de mim. Eu, Riobaldo. (GSV,129)

Eu era dois, Diversos? O que não entendo hoje, naquele tempo eu não sabia (GSV,431)

... sou mulher absurda uma nenhuma várias. (A,18)

...a vida é minha, todas as vidas. Inclusive esta. Eu primeira pessoa absurda. Eu não existo. E então? (A,60)

O senhor está diante de um bicho fragmentado, dividido em cacos semeados na incoerência. (A,16)

10 - A metalinguagem

A metalinguagem é muito frequente nos dias de hoje. Trata-se da interferência do narrador, que discorre sobre seu próprio método de narrar. Nesse caso, a narradora atua como personagem, narradora e crítica. Ela manifesta estar consciente da desordem de sua narrativa. São três atuações distintas, porém interpoladas.

Estes fatos todos apenas delimitação de onde o começo-hipótese, a que dentre todas melhor me parece. Divago. Nunca soube o local [...] foi ontem antontem ou há muitos anos que foi pode nem ter sido. (A,14)

O senhor me perdoe a divagação, que é com ela que venço as naturais dificuldades do afagar estes fatos. (A,18)

É bom que esteja aqui, não sabe o prazer o gozo que me é permitido quando diz que devo continuar esta narrativa torta e sem valor [...] o senhor já deve ter a observância de minha dificuldade em falar esta sintética língua, aborrece-o certamente a sintaxe e
...outras dificuldades, mas é assim que me expresso eu aquela em mim carne viva. (A,24)

Desnecessário reafirmar a insinceridade do narrador quando de si mesmo eu primeira pessoa fronteira de abismal absurdo. As falhas se não me expresso bem, não exponho finamente as ideias, é por inaptidão. Uma cegueira grossa. (A,49)

Sua narrativa é tão descontínua e lacunar quanto a memória humana. Considerando o fato de que a memória é seletiva, justificam-se as interpolações, digressões e antecipações da narrativa.

Assim digo relatando-lhe os pormenorezinhos dessas particularidades para que vá formando seus painéis e imagens da situação que me imposta foi. Minha narrativa deixaria de ter sentido ou perderia grande parte da sua significação sem as exposições que lhe faço aqui nas minhas naturais dificuldades. (A,20)

...não devo esquecer-me de narrar os acessórios fatos sem os quais o último perderia sua razão, sua justificativa. É preciso situá-lo para que compreenda em que circunstância cometi o cometido. Se não tiver pecados atire a primeira a pedra. (A,25)

Pode parecer-lhe fora de propósito, mas como verá mais tarde todo este fato vem muito a tempo. Espero não estar aborrecendo-o, embora aqui dentro cá no mais íntimo esteja certa de seu cansaço. Esta narrativa vagabunda por certo não interessa a ninguém. (A,37)

No plano da fabulação, o narrador incentiva o interlocutor (ou o leitor) e tenta mantê-lo atento para que não abandone a audição (a leitura).

Mas advirto: estamos apenas no princípio das dores, muita lama está por vir. (A,12)

Não posso deixar de dizer-lhe dos capítulos todos os capítulos insanes que me levaram ao último ato. É preciso que me justifique. (A,18)

A importância desse fato que a princípio pode lhe ter parecido de tão pouca significação consiste em que sedimenta em mim mulher nenhuma várias o fio condutor de minha história que arranco do de dentro de mim. Não se precipite que é aqui que começam as dores. (A,40)

11 - Flexibilidade da sintaxe

Não nos ateremos a esse item pelo fato de ele já ter sido explorado pela pesquisadora Maria Teresa Ceotto, num artigo anexo à terceira edição de Aninhanha (A,111-131). Gostaríamos, no entanto, de enfatizar que o livro de Pedro J. Nunes foge ao padrão do romance tradicional. Não tem parágrafos para o repouso dos olhos, não tem capítulos nem é dividido em partes. O leitor é surpreendido pela subversão à sintaxe, pelas frases inacabadas (às vezes incompreensíveis), pelos neologismos, pelo livre manejamento do tempo e pela narrativa meio caótica. O lugar do herói, das narrativas tradicionais, é ocupado por um ser sem identidade, reificado, absurdo, vítima do contexto em que vive. Por mais que sinta repulsa pela vida que leva, não encontra saída para um destino melhor que o de sua mãe: o da catação de lixo e o da submissão do próprio corpo “aos brutos”, em troca de moedas.

Na linguagem de Pedro J. Nunes, assim como na de Guimarães Rosa, substantivos, adjetivos, advérbios, verbos e pronomes trocam de categoria gramatical, o que dá maior flexibilidade e beleza à língua. Há também inversões da ordem gramatical e omissões de elementos, assim como a presença de locuções e de palavras soltas equivalendo a orações.

12 - Repetição ou ressonâncias do eco

Por vezes, a preocupação do autor com a sonoridade supera questões gramaticais ou semânticas. O aspecto lúdico se manifesta por meio do ritmo. Repetição de sílabas, de palavras e até mesmo de redundâncias, que fazem parte do jogo.

Helmut Hatzfeld, em seus estudos sobre o barroco (1988), afirma que a ressonância do eco (ou repetição) constitui um dos meios estilísticos barrocos mais típicos, como manifestação do ir e vir entre o céu e a terra. O eco, que corresponde à sucessão de vocábulos com final semelhante, normalmente é evitado na prosa. Pedro J. Nunes usa essa figura com grande frequência. A sonoridade proporciona um efeito lúdico e/ou enfático. Hatzfeld considera também como eco a repetição de vocábulos, de orações, de frases, de temas e de ideias. Vejamos algumas repetições em Aninhanha.

12.1 - Repetição de palavras

...os pais do bicho louco bicho inútil bicho necessário. (A,13)

Relutância houve não houve não atino. Mas queria que sim que sim, que ela que não que não do não um soco na boca e sangue e sangue o sim definitivo, que a mulher é de sempre dizer sim. (A,14)

Aninhanha! Aninhanha! Que bicho esquisito era Aninhanha. (A,15)

...fragmentos-fragmentada. O senhor está diante de um bicho fragmentado. (A,16)

Aninhanha em sua calma de abandono e de silêncio e silêncio e silêncio. (A,19)

A vida a vida e a vida. O existir apenas existir. Sem fim. Sem espírito. Sem hálito. Ou rumo. (A,40)

Efeito lúdico e/ou enfático da sonoridade:

...quem vive vida de expiação vida carregada vida de carregação... (A,16)

Besta de besta eu me basto. Basto aliteração de bosta. (A,26)

Aconteceres. Acontecências. Acontecimentos. Consumados casos. (A,40)

A vida é mais nada ada adinha de merda, é segundo o evangelho de cá os meus critérios. (A,60)

12.2 - Repetição de frases iguais ou parecidas

Vejamos, por exemplo, a metáfora da mosca. A narradora, tal qual a mosca, se debate sem rumo, num ir e vir frenético, com mesma ânsia de se libertar (de quebrar a vidraça).

Abra um pouco a janela, liberte aquela mosca que esvoaça contra a vidraça, não me é possível suportá-la. (A,12/3).

Abra mais a janela. Já foi embora a maldita mosca? (A,14)

A memória está esvoaçando ferida de bater contra as vidraças aprisionada.  (A,16)

A mosca esvoaça contra a vidraça. (A,40)

A mosca esvoaça. (A,50)

A mosca rompe a vidraça. Cacos. E eu me estilhaço. (A,73)

...eu voava uma mosca enlouquecida de quebrar asas contra a vidraça. (A,78)

A mosca borboleteava nas brumas da angústia. (A,80)

A mosca esvoaçava. Até o despertar. (A,83) 

12.3 - Repetição de temas

Há também a recorrência, em menor escala, da temática da solidão, da luz e das sombras.

12.3.1 - Solidão: o isolamento do ser, preso na ilha de si mesmo

...sozinha consigo e seu cigarro a ruminar mágoas a respeito de tudo de que nunca falava de que nunca manifestava um sinzinho. Não me lembro que tenha reclamado uma vez das suas angústias lá dela, gostava era de sofrer sozinha como se no fim de tudo tivesse extraído lições de solidão imposta. (A,10)

Fui me acostumando à solidão... (A,17)

Impressão que me acompanha muito as relembranças dos dias é a inevitável solidão que me foi imposta. (A,20)

Ia falando das impressões da solidão [...] suportar a terrível solidão imposta dos primeiros tempos [...] irremediavelmente só [...] habituei-me quase totalmente à solidão [...] A solidão e o vento. A solidão me ensinou a necessidade deste mosaico. (A,21)

De ficar assim tão só esquecida num canto como um ser inanimado é verdade que acabei me tornando irremediavelmente só mesmo quando tinha Aninhanha rondando por perto de mim [...] Finalmente a solidão se tornou absolutamente necessária para que eu existisse. Adquiri o que era evidente: os hábitos que se apessoavam aos daquela mulher que nunca aprendi a chamar de mãe. Aninhanha solitária e solitária. (A,22)

Só irremediavelmente só. (A,30 e 70)

Rondei a solidão com o rabo entre as pernas feito uma cadela doida... (A,65)

Anulei-me desgraçadamente. Perdi-me na minha solidão imposta pelo desencanto. (A,74)

O  poço vazio-vaziinho de nada era solidão. (A,82)

Eu e a solidão, e eu e eu. (A,92)

12.3.2 - Luz

Uma porta a mais. Uma explosão de luz. (A,55)

Explosão. De luz. (A,58)

Às vezes parecia que ia explodir. (A,59)

12.3.3 - Sombras

...aqui dentro do escuro poço escuro a que me reduzi... (A,12)

...o escuro da noite medonha, quando eu começava a gritar. (A,16)

As areias de algumas praias são tão branquinhas. Contrastavam de forma admirável com a escuridão do tugúrio onde eu e Aninhanha montes de lixo nos recolhíamos num sono prostrado de nada ver e sentir. (A,19)

...cortina negra rés do chão até o teto. Eu sou uma janela oculta. Da legião ao abismo. Tristezas. (A,25)

...noite de minguante no infinito noite medonho-tenebrosa. (A,82)

...recordam-me apenas as sombras medonhas na imaginação. Sombras muito negras. (A,92)

As gargalhadas foram aos poucos inundando a noite. A noite e o túmulo. (A,94)

12.3.4 - Névoa

Confesso que não há de que se possa apalpar a razão desta vida coberta de brumas e regurgitada com dificuldades pela mente turva. (A,11)

...é névoa, onde o começo de uma, várias ou nenhuma vida aqui dentro gritando [...] na névoa que cobre estes anos todos eu posso descortinar nos profundos da noite. (A,13)

Os tempos estão longe-esquecidos cobertos de poeira, a névoa que me toma empurra-os para a escuridão louca... (A,18) 

12.4 - Repetição de imagens

Além da repetição da metáfora da mosca contra a vidraça, vista acima, há, por exemplo, muita recorrência do lugar imaginário onde a narradora teria sido abandonada, quando bebê. Enfatiza-se sempre o contraste entre a assepsia e beleza do local, na atualidade, e a imundície do lixo onde a recém-nascida fora descartada como algo inútil e imprestável.

Nunca soube o local, antes que adquirisse consciência das coisas fizeram lá uma praça um gramado limpo-verdinho bem onde esconder a anterior miséria, um gramado cuidadinho de jardineiro para ocultar de vez o lixo e o bicho [...] abandonado no onde agora tem um gramado verde-verdinho debaixo do humano sol humano [...] hoje tem lá um monumento a um desses muitos heróis, uma praça verdinha, alguma construção caiadinho-bonita que ignora e apaga os antecedentes acontecidos. (A,14)

...abandonado no onde agora tem um gramado verde-verdinho debaixo do humano sol humano. (A,14)

Hoje tem lá um monumento a um desses muitos heróis, uma pracinha verdinha, alguma construção caiadinho-bonita que ignora e apaga os antecedentes acontecidos. (A,14/15)

...me deixaram lá na pracinha onde agora um gramado verde-verdinho de encobrir o que não se cobre, venho juntando peças quebradas no chão à mercê do recolher no meio do lixo... (A,65) 

12.5 - Repetição de ideias

Contando o vivido, num discurso assaz psicanalítico, ela tenta entender, avaliar, justificar e absolver-se dos “consumados casos”, reconstruindo-o no presente. “De que adiantaria me condenar se eu própria me absolvo? Ah a justiça dos homens ah. Me rio.” (A,96)’’ Trata-se de uma busca do entendimento de si própria, da vida, do crime cometido, assim como a espera de redenção, por meio da narrativa. O romance começa com:

Conto consumados casos. Faço por uma necessidade do de dentro, de não carecer explicações [...] é que na verdade nem me dou conta o que a seguir vem de vir [...] Mas como não me é possível obter respostas, ou pior, como me não é possível saber se o senhor está sendo sincero [...] verá que bem posso justificar-me.  (A,11)

Eu me conheço mal me conheço essa vida que arranco das vísceras. Perdi a noção do tempo no mistério da divagação, é névoa o começo de uma, várias ou nenhuma vida aqui dentro gritando. Aqui a confissão necessária. Não julgue que não tivesse eu não tenha um desejo que beira ao desejo dos bichos em lutar para que não pudessem não possam ser do jeito que dispostas são as notícias que lhe conto... (A,13)

Eu lutei bravamente contra o rumo que iam tomando os fatos que compuseram a ferida exposta que sou. É verdade que lancei mão dos recursos de que dispunha e o senhor verá afinal que não são muitos. (A,13)

Preciso me lembrar que estou presa de minhas interiores necessidades, que quero de mim ir além do possível. (A.14)

Não tenho como recordar-me do então irremediavelmente perdido na desmemória [...] antes de tudo aquilo a que pretendo chegar com estas ruminações eu gastava muito do meu tempo imaginando os primeiros dias, sonhava em que Aninhanha me algum dia mostrasse a oculta fotografia que nunca. (A,15)

Não se angustie que não haja respostas que possa dar. Seria absurdo abrir as cortinas absurdo o real [...] mas continuo, é inevitável que cometa o balanço dos anos. Não faça caso: se quiser pode se retirar, a parede ficará aqui, o eco da minha voz na parede branquinha. (A,18)

...é preciso basear em miragens as nunca extirpadas imagens que me da lama resgatam. (A,20/21)

Agora que a angústia tolheu-me toda a possível beleza caco sou mais caco do que eu fui. [...] Não avalia como é pesado lembrar os caminhos e descaminhos e pedras desta vida aqui dentro, creio mesmo que aquela morta em mim eu outra tateando a expiação desde aquele dia em que debaixo da velha laranjeira os urubus terríveis. Não imagina o segredo que aqui dentro de mim garrafa de vidro. Frágil. (A,25) 

13 – Estética do feio

Sabe-se que a obscuridade muitas vezes produz o prazer estético. O gosto pelo complicado, obscuro e difuso, presente nessa obra Pedro J. Nunes e em muitas obras de seus contemporâneos, pode demonstrar a inquietude, a dúvida, a fraqueza e a vulnerabilidade do ser.

Na contemporaneidade, o barroquizante gosto pelo feio, pelo grotesco e até mesmo pelo horripilante continua presente nas artes em geral: quadrinhos, desenhos animados, artes plásticas, cinema, jogos, videogames, literatura, teatro e demais segmentos artísticos. Em Aninhanha, “a poética vida dos trapos” (A,16), “o lixo e seus dons” (A,73) que pintam quadros chocantes, até mesmo nauseabundos, fazem parte do cenário miserável das palafitas e da catação de lixo. A sinestesia se faz presente por meio das evocações sensoriais. A visualização de imagens, cores e movimentos se dá na mente interpretativa. Muitas vezes a visualização estende-se para os outros sentidos. As cenas das mal cheirosas palafitas e dos monturos de lixo suscitam sensações olfativas, causando no leitor a sensação de nojo, náusea e repulsa. A narradora viveu em meio à imundície, desde tenra idade, quando bebê, sozinha no tugúrio, sem ninguém para trocar seus panos. “Ela me tirava o pano sujo e colocava outro de menos sujices espreitando o vazio da janela o espírito das palafitas.” (A,17)

13.1 - Horror

Notam-se também, nessa obra, resquícios barroquizantes no que se refere ao prazer das emoções fortes e de situações aterrorizantes, como as do violento estupro da narradora, das dores atrozes de seu parto, sozinha, no meio do mato, e do decorrente infanticídio. Apesar das dores tenazes, cavou freneticamente, com as mãos, um buraco sobre o qual se acocorou. “Eu urdia e urrava. Dor e ódio. Com um grito de estremecer a noite deixei expelir de mim aquele monte ensanguentado de carne [...] agarrando à tripa que me aquilo unia, com as duas mãos sujas de terra arrebentei os nós medonhos.” (A,94) O filho do estupro, a seu ver, nada mais era que um monte de carne, do qual sentia nojo mesclado ao ódio nutrido pelo estuprador. O dono do depósito acabou conseguindo seu intento após fracassadas tentativas, todas elas sob a chancela de sua mãe postiça.

Há diversas cenas chocantes como, por exemplo, a do coito selvagem visualizada pela jovem adolescente, pelas frestas do casebre, dentro do qual sua mãe meretriz se submetia aos brutos, animais abestalhadas no cio. “Certa feita olhei pela greta o difuso, estava Aninhanha de quatro com o bruto agarrado feito um diabo-ruim um cavalgador dos infernos montado em cavalo absurdo.” (A,28). Outro exemplo: a cena do enforcamento de Aninhanha, “pescoço esticado e roxo, a língua saltada extraordinariamente, os olhos esbugalhados que se fixaram em mim...” (A,95)

13.2 - Miséria e lixo

Uma coisa me lembro bem: a fome o vazio da fome a dor. (A,16)

(ainda bebê) ...deixava-me só na cerca de tábuas velhas entregue a mim. Acontecida dos gritos da fome até que ela chegasse e me desse os sobejos do lixo ou não. Fui me acostumando à solidão e aos indisciplinados horários. Quando se lembrava Aninhanha  deixava-me alguma garrafa colorida com que me entretinha. Na maioria das vezes caía no chão e eu ficava o resto do tempo sem o vínculo que me um pouco amenizava a solidão. (A,17)

...eu sei o que é impor-se relembranças das descoloridas dores atreladas à existência porca existência em condições de abandono e solidão e abandono. (A,18)

... a escuridão do tugúrio onde eu e Aninhanha montes de lixo nos recolhíamos num sono  prostrado de nada ver e sentir. (A,19)  

13.3 - Prostituição a contragosto, como meio de sobrevivência

Creio que aliás usava a cama mais para semvergonhices troca de dracmas, prática que então só exercia à noite, quando tudo escuro evitava que eu lhe visse as gengivas apertadas de sofrimento. Tinha ela as ancas firmes o traseiro generosamente cheio [...] atração dos brutos, animais abestalhados de cio. (A,19)

Após essas sessões de clandestinidade levantava-se Aninhanha, arrumava as roupas no corpo que nem tirava, acendia o cigarro interminável, ia tirar fumaça lá fora acocorada nas palafitas duvidosas esperando homem. (A,20)

A mulher cheia de risinhos semvergonhos de meia saciedade e bolsos cheios as moedas tilintando [...] o homem era colocado para fora de casa assim como eu a fim de que pudesse a mulher abraçar clandestinos braços. (A,39)

Aninhanha tinha suas práticas de mulher de muitos homens por moedas sem direito ao grito [...] rodava a taramela, deitava muda na cama e deixava o deixar de quem de si não é dona. [...] completamente calado-submissa ao alheio-além prazer [...] Marionetes absurdas dos homens, a de receber homens na dor sem direito ao grito. A esta concepção ajuntem-se cacos espalhados de humilhação e dor que presenciava em Aninhanha, as gengivas apertadas do sofrimento de abraçar homens por moedas, a mudez com que se a eles entregava, as dracmas pingadas na dor calada, largadas nas tábuas, o prazer dos brutos na humilhação... (A,40/41)

...a mesma vida a vidinha ordinária de mulheres de aluguel, o movimento sempre de fornicação e fornicação de mulheres por grandes bolsos. (A,42/43) 

14 - O prazer da imprecisão

Na história da humanidade há períodos em que prevalece a racionalidade, a exatidão; outros em que prevalece o gosto pela imprecisão. Paradoxalmente, a mentalidade contemporânea, detentora de instrumentos de precisão e de avançada tecnologia, entrega-se ao prazer estético do vago, impreciso, indefinido. A narradora de aninhanha não exclui nem impõe nenhuma verdade. Em seu emaranhado discurso, prevalece o questionamento, a insegurança. A crise do sujeito, a complexidade das relações sociais naquele mundo miserável, os questionamentos da mulher absurda são tratados de forma confusamente clara, de modo que significante e significado se harmonizam. Trata-se da “clareza relativa” barroca: a dificultação da leitura não interfere na apreensão do sentido; pelo contrário, atrai o leitor para o adentramento do labirinto narrativo.

Personagens e paisagens têm contornos indefinidos em Aninhanha. Há grande incidência de imprecisões também no que se refere ao tempo e ao espaço

14.1 - Indefinição dos personagens

Protagonista e narradora encarnam um só corpo, anônimo, sem identidade e sem caracterização física. A um dado momento ela confessa que não correspondia a nenhum tipo de beleza, mas tinha lá seus encantos, durante a juventude.

Beleza nunca tive segundo os vigentes conceitos, que não nasci para ser bela. É verdade que tinha os meus encantos, a natureza dotou-me de pele deste marrom indefinido, carne dura, ancas polpudas, a beleza bruta sem retoques [...] tinha meus encantos frescos, mas segundo os critérios de beleza bela não era não senhor. Agora que a angústia tolheu-me toda a possível beleza caco ou mais caco do que eu fui [...] os dias arrebataram de mim todos os encantos com que atraía os brutos. (A,24/25)

O grande vilão, o homem do depósito, era também anônimo e sem caracterização. Aninhanha, a mãe adotiva, quase não falava, não olhava diretamente para a filha e nunca fizera um gesto de ternura. Na sua secura e objetividade, era incapaz de demonstrar qualquer afeto.

É verdade que quase não nos olhávamos nossos olhares. Captava-lhe às vezes o oblíquo dos olhos quando vinha cuidar de mim com os lábios sempre muito apertados[...] os olhos distantes que nem de parecer ali. (A,17)

...a me tratar daquele jeito evitando nossos cruzares de olhos que já eram cúmplices. Uma cumplicidade calada. (A,31)

Os outros personagens (prostitutas, vizinhos, clientes), são frutos do bas fond socioeconômico, onde reina a miséria, a lascívia e a violência.

14.2 - Indefinição espacial

Onde se dá a narração? Pressupõe-se em um hospital, clínica ou hospício. O cenário descrito, onde tudo acontece, é uma vila miserável, sobre palafitas, e locais de catação de lixo. A indefinição espacial abre horizontes e retrata a miséria humana nos quatro cantos do mundo.

Divago. Nunca soube o local... (A,14)

Dê-me um desses medicamentos, que não vou parar. É aqui o ponto onde começa tudo até a data em que me acharam naquele lugar lá aonde e me para aqui recolheram. (A,55)

À tarde, retornávamos à vila miserável (A,62)

Aninhanha lá fora acocorada observando no infinito o infinito das palafitas [...] O lugar público das palafitas o lugar comum. (A,63) 

14.3 - Indefinição temporal

Aninhanha não tinha noção do tempo cada dia o seu lixo, nunca soube me dizer nas raras ocasiões em que falou o tempo em que recolheu no lá aonde aquele meio ensanguentado embrulho que continha uma criança. (A,15)

O tempo objeto de dúvida. Desando descaminhos. Um dia... (A,22)

Era de tarde, de manha? O tempo objeto de dúvida. Desando descaminhos. (A,24)

A sua ansiedade haverá o termo certo em que a sacie, quanto eu concluir a curva do tempo. O tempo medido. Então a possível paz, já não serei a única a saber o crime. O pecado. Não posso no que me concerne ignorar os descaminhos que me àquele levaram, não devo esquecer-me de narrar os acessórios fatos sem os quais o último perderia sua razão, sua justificativa. É preciso situá-lo para que compreenda em que circunstâncias cometi o cometido. Se não tiver pecados atire a primeira pedra. (A,25)

Necessário o tempo passar. Água. O tempo e o estrume. (A,28)

O tempo. Quando que isso? Não há no bicho íntimo necessidade de tempo. É fluir o sonho modesto. (A,58)

O tempo corria ampulheta absurda. O tempo medido é apenas uma cadeia em que os fatos se encaixam. (A,61)

Assim olhando aquele homem me a impressão que dava é de que eu já havia existido séculos e séculos. Curioso é o não conhecer minha idade, não posso me no tempo localizar. (A,84)

Quanto tempo? O tempo é imensurável. (A,90)

Foi num dia o tempo ah como eu preciso do tempo. Deparei com minha barriga crescendo... (A,91)

O tempo era o tempo de passar [...] a eternidade todo todinha. Sem pensares [...] que dia é hoje? É dia? É noite? Eles (os ratos) virão hoje ou amanhã? Tanto faz. Hoje ou amanhã. Ou nunca. (A,92) 

15 - Conclusão

Esse trabalho de Pedro J. Nunes está em consonância com obras literárias de diversos contemporâneos seus, que primaram pelo gosto dominante da era pós-moderna, no que se refere à estética do barroco, com as devidas atualizações temporais. Encontramos e exemplificamos, por meio de inúmeras citações, a presença de diversos traços neobarrocos, tanto conceituais quanto formais. Começamos pelas tendências artísticas constantes, ao longo da história, das quais o neobarroco é uma ramificação. Passamos pela estética do fragmento, da imprecisão, do labirinto, do hermetismo, do feio... e focalizamos algumas técnicas formais recorrentes nos escritores que se moldam a essa corrente: intertextualidade, fragmentação da linguagem, subversão à sintaxe, repetições enfáticas de palavras, frases, ideia, imagens e de temas.

Tudo isso contribui para o hermetismo da obra, que tanto pode desencorajar, como atrair o leitor. As aporias que se interpõem durante a leitura podem ser superadas por meio de uma leitura atenta e vagarosa, que certamente desaguará no “prazer do texto”.

Nesse romance, de apenas 87 páginas, a linguagem e o estilo são milimetricamente estudados. Como já foi dito, nada é aleatório. Segundo depoimento do próprio autor, após o término da obra, ele passou cinco anos retocando-o antes de publicá-lo. Burilou-o como se faz com pedra preciosa. O resultado foi esse: uma joia literária de grande valor.

 

Nota

Todas as citações do livro Aninhanha foram extraídas da terceira edição, publicada pela Secult, em 2015. Após cada citação, o título da obra será apresentado apenas pela inicial “A”, seguida do número da página.

 

Referências

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