Morte em V., por Reinaldo Santos Neves

Ruy Perini

O título é uma clara alusão a Morte em Veneza, publicada em 1912, segundo livro de sucesso de Thomas Mann.

Porém o livro traz como subtítulo “CONTENDO VIDA E OPINIÕES DE UM CERTO RAINER MARIA RAINER, ESCRITOR”, referência a The Life and Opinions of TRISTRAM SHANDY Gentleman, a obra-prima de Laurence Sterne, que no século XVIII revolucionou a forma do romance. Mas também um explícito encômio a Rainer Maria Rilke, ao tratar de um suposto autor biografado por uma narradora onisciente, mas não identificada, autor que teria ganhado o nome numa homenagem do pai ao poeta e romancista austríaco.

Como explica Maria Clara Medeiros Santos Neves, na orelha, é um livro que ela e o autor “costumamos chamar de autobiografia literária, apesar do muito que tem de sua própria vivência, é totalmente ficcional, e a ele, em especial, o autor deu tudo de si pelas beiradas de sua memória.”

Quem, pelo subtítulo, esperar um livro a la Sterne, se decepciona. RSN não tem uma prosa formal, mas não carnavaliza o texto como o escritor britânico (Sterne nasceu na Irlanda, mas viveu dos 10 anos até sua morte aos 55, na Inglaterra).

O livro tem, sim, algo de autobiografia literária, confundindo às vezes a obra do ficcional Rainer Maria Rainer com a do autor, mas o ranzinza biografado é produto da mente de Reinaldo, que nos brinda com uma aula de literatura, citando e comentando obras de grandes escritores como Thomas Mann, Dostoievski, Henri James, José Carlos Oliveira, Machado de Assis, Rilke, João Cabral, Gilbert Chaudanne, Chesterton, Proust, Kafka, Guimarães Rosa, Tulo Hostílio Montenegro, entre outros. Às voltas com o drama existencial de chegar aos 70 anos (o autor completou 77) e fazer um inventário da sua obra, durante uma participação em um Congresso a convite de uma grande universidade católica onde trabalhou em V. (embora assim tratada trata-se claramente de Vitória), cidade que abandonou para morar em L. (metrópole não identificada), onde se dedica a trabalhar burocraticamente em outra universidade, esta luterana, e onde se dedica a aprimorar sua produção literária. Este périplo pela cidade de origem torna-se uma aventura em que cria atritos com um público predominantemente feminino, que enaltece a literatura, mas de forma festiva e pouco convincente. Aventura que contribui para ele confirmar a decisão, que já tomara, de nunca mais voltar a V., “cu do mundo”, como define.

Bem, Rainer fala também de autores estadunidenses, mas para desclassificar. Diz que a literatura americana só visa enaltecer o heroísmo, seja ligado ao esporte ou à história política armamentista. E seu alvo principal é Hemingway, que considera um escritor medíocre ao extremo.

Mas esta aventura com viés meio penitencial serve também para resgatar a possibilidade de uma vivência amorosa, idealizada nas figuras de duas jovens. Uma real que se mostra tiete e grande conhecedora de parte da sua obra. A outra, mais no plano ideal, é um modelo de beleza sedutora, que ele vislumbra no hotel onde se hospeda e, mais tarde, quando visita “a Ilha das Caieiras veneziana”. Embora muito bela e sedutora, manca de uma perna, o que faz com que Rainer mais ainda a valorize, ao contrário de Brás Cubas, que fica seduzido pela bela Eugênia (nome que ironicamente significa bem formada), mas que não consegue namorá-la por ser “coxa”.

Livro instigante, produto e fonte de muitas pesquisas, vale a leitura cuidadosa.

Leia outros textos

Voltar