No fundo, o mundo foi feito para acabar num belo livro.
Stéphane Mallarmé.
Em 2000 tive a oportunidade de realizar seleção, notícia biográfica e estudo crítico para o número 7 da coleção Alberto Almada, dedicado ao poeta Miguel Marvilla. A coleção, que hoje conta com 23 volumes, é uma iniciativa da Secretaria de Cultura de Vitória com o propósito de registrar vida e obra de escritores capixabas contemporâneos.
Marvilla foi quem me forneceu a maior parte do material para pesquisa: seus livros, inclusive os mimeografados e os inéditos, como Zooilógico (literatura infantojuvenil), recortes de jornal e o que considerava sua fortuna crítica: dois cartões de Drummond parabenizando o então jovem poeta pelo lançamento de seu primeiro livro e uma análise inédita de Andréia Delmaschio.
Em uma série de encontros, Marvilla me apresentou a Marvila, o escriba, o poeta sempre em busca de matéria para poesia, o editor obcecado pelo “embrulho”, pela estética do objeto livro. O título que eu daria para o livro seria Dédalo e o labirinto das paixões. Foi Miguel quem sugeriu que seria bem feito para Dédalo torná-lo vítima da própria criação, aprisionando-o para sempre no labirinto. Foi o que fiz, encantada com esse personagem, emprestei-lhe minhas palavras e lhe roubei outras tantas para devolvê-lo ao seu lugar de origem e pertença: o labirinto da escrita.
Marvilla para mim nasceu em 1987, no campus da Universidade Federal do Espírito Santo, em uma longa conversa em que pude me desafogar das teóricas aulas de literatura e me deparar com a poesia ao vivo: Miguel a carrega consigo, nos olhos, nas palavras. Tal Borges, deixa-nos sempre em dúvida entre real e ficção, tem ótimas histórias a contar e um arsenal de leituras a partilhar.
Fazer a apresentação do seu trabalho ao público foi uma oportunidade de reencontrar Marvilla e dar contornos mais nítidos a essa figura que já se descolava do fundo da minha memória.
Nunca acreditei muito em isenção e objetividade quando se trata de literatura. Sempre gostei das biografias romanceadas e creio que esta não estará longe disso, pois o que sei do Marvilla, embora não tenha sido Malazarte que me contou, foi o próprio Marvilla e, como nos alerta Paulo Leminski: “o primeiro personagem que um escritor cria é ele mesmo” [i].
O Marvilla me contou, e isso os registros oficiais comprovam, que nasceu em 1959, em Marataízes, no dia 29 de setembro, filho mais velho de Antônia Marvilla e de Aristides Vicente de Oliveira. Em Marataízes, aos sete anos, teve sua primeira namorada, que não foi um porquinho-da-índia e sim Beatriz. Numa brincadeira de pique-esconde ela lhe deu o primeiro beijo.
Aos cinco anos, após a separação dos pais, Miguel passa a viver em Vitória.
Marataízes talvez seja apenas um retrato na parede, arrastão de lembranças das férias aí passadas até os dez anos em companhia do pai e dos irmãos, mas é possível que dele ainda se possam encontrar vestígios por lá, “quando o último turista der o fora”.
Do Orfanato Cristo Rei, hoje sede do Seminário da Arquidiocese de Vitória, ele, menino solitário, apreciava a paisagem puro mar. Vitória é que foi eleita o lar do poeta. Enquanto os colegas jogavam futebol, Miguel jogava com os números. Depois veio a palavra: Miguel aprendeu a ler nas duas primeiras semanas de aula com a professora Célia Ferraço Nunes e, já sabendo a tabuada, foi remanejado para a segunda série.
Miguel era o “ai Jesus” das irmãs Marcelina, Luciana e Cecília que, percebendo a sua desenvoltura, o incentivaram com aulas de órgão e leitura do evangelho. Aos dez anos de idade, ele lia o evangelho todos os dias às seis horas da manhã. Aos domingos fazia leitura em três missas: de manhã no Orfanato, à tarde na Igreja de São Benedito e à noite na Catedral Metropolitana de Vitória. Dessa época, ficou-lhe o amor pelo cheiro velho das igrejas e a convicção de que já esgotara seu estoque de missas a assistir. Há também um fato importantíssimo, uma aventura fantástica vivida pelo menino Miguel nessa época: a descoberta da passagem secreta para a biblioteca. Lá Miguel não encontrou livros de areia, mas um verdadeiro tesouro: milhares de revistinhas em quadrinho: Tex, Batman, Flash Gordon, Tio Patinhas.
Dentre outras coisas, Marvila me contou que muito cedo aprendeu português com Tio Patinhas e que, a partir de então, não parou mais de ler. Na adolescência, adorava livros de bolso, especialmente os de um tal Marcial Lafuente (M.L.) Stefânia: “que os livros dele tinham uma heroína formidável, e isso é o que importa, lá isso tinham: Brigitte Monfort, filha de Giselle, a espiã nua que abalou Paris. Perdi a conta das vezes que me escondi debaixo do lençol, imaginando-me um daqueles espiões russos (eu sempre gostei de ser do mal) que ela seduzia com seu corpo sedento, seus olhos verdes e sua boca molhada (...)” [ii].
Mas na verdade, quem seduziu Marvila na adolescência não foram apenas Brigitte, Gisele, mas Gabriel García Márquez, que lhe foi apresentado, aos 14 anos, por seu professor de Geografia, Ozílio Rubim. Ele estava em missão na sua casa, buscando um Atlas para decorar todas as capitais do mundo (Miguel sempre gostou de desafios). Pois bem, ele decorou todas as capitais do mundo e se condenou a cem anos de solidão e, embora reivindique herança portuguesa, é na verdade herdeiro direto da linhagem dos Buendía, seres de tinta e papel.
Mais tarde, Marvila se entregava a um outro desafio: andava por um caminho aonde se vai só com a própria sombra. Depois de percorrer um labirinto de dunas e sol, abandonado pela amada, conheceu Oscar Gama Filho numa exposição em 1978. Aí surgiu uma grande amizade e o projeto de fundar uma cooperativa de escritores, o que fizeram. Foi numa reunião dessa cooperativa que surgiu a ideia de publicar seu primeiro livro em edição caseira, mimeografada. Entre 1979 e 1981 os seus três primeiros livros circulam pelos bares de Vitória.
Depois vieram Renato Pacheco, Reinaldo dos Santos Neves, José Augusto Carvalho, Marcos Tavares, Luiz Busato e estava formado o grupo Letra e criada a revista que leva o mesmo nome.
No seu segundo livro, A fuga e o vento, Miguel publica o poema “Ofício”:
Não posso prescindir da janela
Pretender a lua é meu ofício
A lua é a musa, a própria poesia com quem o poeta sela seu compromisso. Nesse período, participa das oficinas literárias ministradas por Deny Gomes, publica vários contos e poemas na revista Letra e recebe prêmios pelo seu trabalho.
Os mortos estão no living, livro de contos lançado em 1988, marca o início de uma nova fase da vida do poeta, ele conclui um longo tratamento que o curou de um câncer no sistema linfático e: viver, vivendo (living), a lição aprendida encontra eco nos versos de “Go back” de Torquato Neto: “Só quero saber do que pode dar certo”, esse passa a ser o lema do poeta.
Em 1991, já com cinco livros publicados, Marvila, que detesta ser chamado de pós-moderno, se faz eterno: passa a ocupar a cadeira de nº 18 da Academia Espírito-Santense de Letras. Depois vieram os outros livros, de poesia: Tanto Amar, em 1991, Dédalo e Sonetos da Despaixão,em 1996.
Em 2000 funda, juntamente com Christoph Schneebeli, a editora Florecultura, passando a dedicar-se profissionalmente ao trabalho de editor, incumbindo-se da tarefa de tirar Vitória do eixo periférico do mercado editorial. Os livros editados por ele deixam evidente o seu cuidado com o acabamento, com a correção da linguagem e com a beleza do conjunto. Como ele gosta de dizer: “a mulher de César não tem apenas que ser honesta, ela tem que parecer honesta”. Exemplos disso são as primorosas edições de Escritos entre dois séculos, coletânea de textos literários capixabas (2000) e Espelho da alma (2000), livro de contos de Erlon José Paschoal.
Marvila editou cerca de 100 livros pela Florecultura, inicando algumas linhas editoriais como a coleção Asas de Cera (literatura), Biblioteca Universitária e Olhares e Perguntas sobre Ler e Escrever, voltadas para a produção acadêmica.
Marvila me contou que o que o levou a escrever foi uma pedra no meio do caminho. Numa aula de português, declarou que o poema “No meio do caminho”era uma porcaria e a professora o desafiou a escrever algo melhor. Desde então é o que vem tentando fazer: todo dia leva a pedra até o alto do morro e ela rola de volta deixando um rastro de palavras.
Já se disse que a biografia de um poeta são suas obras completas, eu diria que a biografia de um poeta não se completa nunca, considerando que o texto que garante e perpetua a sua existência é “feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação” [iii] e se renova a cada leitura.
A influência primeira do poeta é Carlos Drummond de Andrade, cuja presença se faz notar não apenas nos poemas que fazem referência direta à sua poesia, mas num certo tom de angústia e perplexidade perante o esforço inútil de resistir.
Em dossiê publicado na revista Cult, de número 26, vários poetas falam do fascínio e da influência de Drummond sobre sua poesia. Marvila, leitor confesso de Drummond, também não poderia escapar a esse fascínio, pois, conforme Heitor Ferraz: “Drummond é um lodaçal — nele muitos poetas patinam, deslizam, tentando escapar de sua influência. É essa uma luta árdua, já que sua dicção extremamente poderosa captura o ‘pardal novo’ (como Bandeira designava os jovens poetas) e entranha-se na linguagem que começa a ser elaborada.” [iv]
Os primeiros livros do poeta trazem o esforço do combate. Em A fuga e o vento, o título e a epígrafe são retirados do poema “Instante” [v], de Drummond, e o poema “Canção quase inimiga” é campo de uma guerra viril que se declara ao “poeta forte” de “Canção amiga”:
“não quero essa canção amiga!”.
quero uma canção inimiga,
uma declaração de guerra a todo solecismo
— coletividade de um só.
No poema “Omissão”, penúltimo desse livro, em vez de lutar contra a influência drummondiana, o poeta exorcisma essa influência por meio da ironia, a começar pelo título, pois em vez de omitir, o que faz o poeta no decorrer do poema é confessar-se e conversar com a sua poesia:
“há tanto teeemmmmmpo não leio Drummond
que não sei do tempo presente
nas minhas mãos
em floração
É como se o velho poeta lhe dissesse, quase em tom de desculpas: “A literatura estragou tuas melhores horas de amor.” [vi]; e o poeta jovem respondesse:
Há muito que não sei ler
(perdi os óculos e a memória
em mistérios de amor)
(...)
e não faço mais que amar e ser amado
É pela via do humor que Marvila supera a angústia da influência de Drummond e dessa aceitação nasce a sua voz, sua pele de palavras:
Nascimentado
esta pele que me dei
do universo que tinha
a esta pele que me dei
— o universo que tenho
Além da intertextualidade explícita das inúmeras epígrafes, referências, paráfrases e paródias presentes nos livros de Marvila, o que merece mais destaque, talvez exatamente pela sutileza, é o refinado jogo intertextual a que chega o poeta exatamente em Dédalo (1996), em que o poeta se apodera do estilo de outros poetas, incorporando-o à sua escritura. O poeta Fernando Pessoa é quem inspira esse processo de despersonalização por meio do qual se ouvem múltiplas vozes. Talvez o culpado seja o cupim que: “Mergulha em meu livro de Fernando Pessoa / até o fundo de mim”.
Essa ação do cupim destrói o “eu poético” e Pessoa, juntos no livro, amalgamados pelo ato de troca que é a leitura. Depois da leitura, de certa forma, texto e leitor têm seu fim, pois nenhum dos dois será mais o mesmo, talvez no lugar reste um outro (mais um?), ou vários outros fundidos num só. A impressão que se tem ao ler os poemas de Dédalo é de que Marvilla fala com a voz de Pessoa, o que se percebe pela temática do eu cindido, pela seleção vocabular, pelo tom nostálgico e pelas imagens marinhas:
A minha alma partida vai por uma
alameda de sombras inclementes.
eu a vejo, por vezes, na penumbra
de um soslaio — eu excessivamente este
que assim sou. Nos baldios de mim s’tando
num granítico silêncio a descoberto
e um comboio de angústias, eu naufrago
nos sargaços de um mar de pensamentos
Nas “Quadras, parte I”,tal quais os jazzistas que improvisam sobre um tema básico, o poeta faz inúmeras variações sobre os clássicos temas do fingir e do outrar-se pessoano. O poeta, tal qual o cupim, corrói, desconstrói a retórica pessoana, até esvaziá-la ou enchê-la de novos sentidos:
só sinto o que me é dado
sentir. Mas, se por um lado,
o que sinto não é meu,
quem sente, outros ou eu?
escrevo para mentir
de público o que para mim
há muito sinto — e refuto:
de tantos, não sou nenhum.
(...)
eu sou um excesso de outros,
não sendo outros, tampouco.
e deito-me em pensamentos
que nem sempre reconheço.
Fernando Pessoa não é o único poeta lido por Marvilla em Dédalo, como o próprio título deixa antever, o discurso mitológico também é revisitado nos poemas “Dédalo”e “Ícaro”, além da poesia de Gilberto Mendonça Teles, nas belas imagens aquáticas do poema “Peixamentos”, Drummond, no poema, “A lenta vontade das coisas findas”, Bandeira, em “Pesadelo simplex”, Dante, de quem o poeta busca o nome da musa, Beatriz, presente em “Na luz das duas horas de uma tarde” e “A segunda que chegou foi Fabiana”, de Tanto amar e retomado em “Tudo era por minha causa”, de Dédalo.
Dédalo, no conjunto da obra de Marvilla, seria exatamente esse ponto de maturação da poesia, em que são resgatados os experimentos formais e o humor dos seus primeiros livros, somados a outras conquistas como a habilidade de manejar o poema longo, o soneto, a ousadia de retomar o coloquial, as quadras populares e os mais variados ritmos e métricas. Poder-se-ia dizer que esse é um livro de resgate não só de formas, mas de temas, o poeta retoma a infância, num dos seus mais belos poemas (Tudo era por minha causa), a terra natal (Quando o último turista), reflete sobre os seus medos, sobre a doença (Pesadelo simplex), fala sobre os filhos (O flautista e Menininha), fala da própria poesia, além, é claro, do amor, a que me dedico em outro texto.
Notas
[i] LEMINSKI, Paulo. Anseios crípticos. Curitiba: Criar, 1986. p. 73.
[ii] MARVILLA, Miguel. De Profundis. Por que não? Você, Vitória, n. 45, mai. 1997. p. 22.
[iii] BARTHES, Roland. O rumor da língua.
[iv] FERRAZ, Heitor. Presença de Drummond. Cult. n. 26, set., 1999. p. 61.
[v]ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. 24. ed. Rio de Janeiro: Record, 1990. p.171.
[vi] Ibid. p. 117.