Meu romance Menino tem sido interpretado como um livro puramente de memórias, o que é um engano. Trafega aí, não posso negá-lo, farto material que efetivamente fez parte da minha própria vida. Todas as personagens do livro existiram, foram reais, os fatos ali expostos, mesmo os mais cruéis, aconteceram e ficaram profundamente gravados em minha memória, matéria tratada com muita carpintaria, tarefa o mais das vezes titubeante, às cegas, sofrida. Tanto mais quanto estava lidando com uma realidade tão longínqua, encravada lá nas entranhas insondáveis da infância, com a qual tive um encontro, digamos, acidental.
Não posso negar a origem do livro, ou seja, a narrativa que cobriria episódios pitorescos de minha infância, uma infância bastante feliz de menino pobre do interior do Espírito Santo, mais precisamente de São José do Calçado, no final da década de 60 e início da de 70. A proposta inicial para a escrita de Menino era justamente essa. Surgiu dos casos de minha infância – um repositório de lembranças teimosas, ainda que boas – contados aos amigos. Graças ao incentivo dos amigos Reinaldo Santos Neves e Joca Simonetti, tomei coragem de contar essas histórias, embora fosse tão pouco afeito a esses casos de memórias, embora temesse tanto falar tão francamente sobre certas particularidades do que vivi. Ao começar a escrever o livro, no entanto, dei de cara com um romance pronto, e a história começou a mandar em si mesma. Eu, afeito expectador, deixei as coisas irem acontecendo, aproveitei o material que se dispunha a caminhar com suas próprias pernas, domado o principal elemento do livro, ou seja, a perspectiva do menino, da criança, com relação aos acontecimentos e às pessoas. Claro que farta matéria de memória surgiu durante a escrita, afinal a escrita do romance Menino acabou se transformando num mergulho profundo num tempo antigo e numas lembranças ásperas, ambos às vezes assustadores, mas domei aquela parte do que ia se sucedendo que dissesse respeito a um plano que, em dado momento, havia estabelecido para o romance.
Não é porque tudo aquilo que exponho no livro realmente aconteceu exatamente como está nas páginas do romance argumento para que recaia sobre o livro o caráter de mera memória. Ocorre que não pude ignorar a matéria real que se oferecia ao ficcionista. Os fatos estavam disponíveis e se impuseram. Mesmo quando escrevia meu romance, tentando domar todos os elementos literários típicos de um romance, tinha plena consciência de que havia uma história pronta, uma história bem real, uma história de que precisava me livrar.
Creio que tudo redunda em que este é um livro em que narrei fatos que aconteceram em minha infância tanto pelos olhos de menino-narrador quanto pelo olhar retrospectivo de adulto-escritor, interpolando-se o tempo da narrativa com o tempo da escrita. Mas não se trata de livro de escritor adulto com saudades da infância. Longe disso, Menino é seco como um coice e não dá vez a pieguices.
Hoje, anos após havê-lo escrito, impressiona-me a precisão com que o livro retrata, em vários aspectos, a cidade em que vivi a minha infância, ou seja, São José do Calçado. O livro traça um retrato impressionantemente real da cidade e do meu sentimento com relação a ela – sentimento que talvez não tenha sofrido qualquer alteração mesmo hoje.
O foco dramático do romance está num episódio real de pedofilia de que foi vítima uma de minhas parceiras da infância. E ficou bem claro durante a escrita que, mesmo em se considerando o revestimento literário, eu não podia me calar sobre a realidade.
A maior influência do livro foi Graciliano Ramos, com Infância, matéria autobiográfica com sofisticado tratamento literário do grande autor. Adotei a perspectiva do livro, de quem olha de baixo para cima o mundo dos adultos. Não me aproximei da linguagem árida do grande romancista. Pelo contrário, abuso dos adjetivos, acho os adjetivos indispensáveis para a carga dramática que busquei dar à narrativa. Sei que isso é uma tremenda contramão, mas forjei assim minha escrita, ou meu estilo – se é que tenho algum – e minha relação com os adjetivos é bastante amigável.
Eu diria, em síntese, que Menino é um olhar frontal ao meu próprio tempo, um olhar muito franco, muito expositivo. Afinal, ali estou eu e várias pessoas que leram o livro e viveram aquele tempo me reconheceram e se reconheceram. Mas não escreveu Edgar Allan Poe que a melhor forma de ocultar-se é se expondo? Não advertiu Somerset Maugham que “todas as personagens que criamos não são senão cópias de nós mesmos?” Não se escandalizava Graciliano Ramos de que alguém escrevesse sobre o que não viu ou não experimentou? Eu me sinto plenamente justificado, inclusive do ponto de vista literário.
Um chão cinzento cheio de manchas, assoalhos irregulares, pés de camas, cadeiras, mesas e uma multidão de pernas de mulheres, desgastadas imagens da infância. Dava ao que via uma compreensão particular. Desdenhava o ritmo da turba doméstica. Nas manchas do chão da cozinha imaginava desenhos incompreensíveis. O piso de formas geométricas, uma noção de infinito, terminava num sentimento íntimo da angústia. Desde sempre todas essas coisas: desconheço a origem das miragens, não sei quando desapareceram. Nada há que me tenha causado uma sensação primordial, meus inexatos sentimentos desandavam na paisagem entrevista, no que era possível reter. O cenário cinza raramente era visitado por azuis e eu não tinha a menor noção da distância que havia entre o chão e o céu.
(...)
Certas lembranças não se domam. Não sabemos quando ocorre o objeto delas. Um sonho, uma tarde qualquer, um instante e está para sempre cravada em nossa mente um rosto nunca antes visto, um cheiro, um certo desconcerto. Certamente, nunca havia visto a menina que cruzou meus olhos num daqueles dias. Nem saber sabia quem era. Uma desconhecida, uma figurinha esguia com ar vulgar, uns trejeitos inexplicáveis de anca, despropositais para a idade, ela domou meus olhos. Pensei em Emília, como se o dia nascesse naquele instante, mal podia controlar o peito. Numa Emília desvendada, numa Emília em quem eu sabia o de querer. Senti-me humilhado por sua presença naquela figurinha que se ia sem nem ao menos olhar para mim. Um bicho, era sim, um bicho como me sentia. Porque os sentimentos tais são de bicho. Como os dos porcos quando sobem nas porcas. Senti-me como um porco. Imundo. Um sentimento de porco macho, absolutamente inexplicável, doentio e humilhante.
(...)
Não podia desviar o olho das meninas que brincavam com minhas primas, imaginava-lhes, das formas entrevistas, os segredos do corpo de uma menina, interpondo imagens capturadas furtivamente. Estremecia-me de uma angústia dolorida, assaltado por uns desejos vexatórios que terminavam por denunciar palidezes e tremores.
— Os meninos brincam deste lado, as meninas daquele — lembrava a ordem dos adultos.
Achava injusta a segregação, pois me gostava a ideia das meninas atrás do bambuzal, havia sempre a possibilidade de que nossos olhares cúmplices e o rubor de nossos rostos declinassem os mistérios da alma quando víssemos o galo correr atrás das galinhas e trepar em seu subjugado dorso um arrepiado átimo de alegria.
Sentia saudade da Shirley, que havia partilhado comigo as sombras do quintal da Antão Gomes, saudade que era recriminação. Eu me deitava na friagem da terra nua do quintal, lá na copa das árvores Shirley trepava as pernas finas pelos galhos, chamava-me a olhar para cima. Naqueles breves instantes, mesmo a lembrança dos oferecimentos vulgares da Shirley pareciam uma possibilidade. Julgado e condenado, remoía não ter permitido à oferecida negrinha me mostrar o despenhadeiro de seus sonhos encardidos. Minhas lembranças terminavam num rodavento, Shirley diluía na paisagem. Desperto, verificava que as meninas vigiavam, curiosas, o fumo que evolava de minha saudade.
E havia a irmã de Berto, a mais velha, que balançava as cadeiras como um pêndulo maldito e escondia com os meninos maiores umas alegrias que me doíam, umas alegrias que balançavam os arbustos, os galhos da espeta. Uma obsessão, era o que era a irmã do Berto, que nem do nome eu sabia.