Livros que se ouvem

Pedro J. Nunes

Não sei quando em um dado momento da história da edição de livros os editores descobriram o filão de publicações destinadas aos ouvintes mais exigentes de todos os gêneros musicais. Esses guias são assinados por autores os mais diversos. Pincei dois exemplos para ilustrar esta afirmação: o Guia ilustrado Zahar de música clássica, editado por John Burrows, um guia respeitado, e um pretensioso Discoteca básica: 100 personalidades e seus 10 discos favoritos, em que Zé Antônio Algodoal permite que personalidades as mais diversas indiquem, pelas minhas contas, nada mais do que 1.000 discos essenciais.

Há alguns anos um amigo deu-me de presente um volume chamado 1001 discos para ouvir antes de morrer, livro que vem com a ressalva de que esses álbuns foram “selecionados e comentados por 90 críticos de renome internacional”. Como não pretendo morrer tão cedo, se tudo der certo, apenas passei os olhos pelas páginas ilustradas do livro e descobri que há bem pouco entre esses 1001 discos que ouvi ou ouvirei pelo tempo de vida que me resta. Outro título que não posso deixar de citar aqui por sua estranha peculiaridade é Improvisando soluções: o jazz como exemplo para alcançar o sucesso, de Roberto Muggiati, contendo pequenas biografias de músicos de jazzcuja capacidade de improvisar seria capaz de, acredita o autor, inspirar ao leitor mais impressionável soluções da vida prática. Antes que alguém coloque aqui um espantado ponto de interrogação, a verdade é essa mesma: o livro é vendido como um guia de autoajuda para o sucesso na adversidade a partir da inspiradora capacidade de improvisação de alguns músicos do jazz.

Nem tudo está perdido, no entanto. Foi com agradável surpresa que li recentemente um volume dedicado à discografia do sambista João Nogueira. Um achado precioso. O título diz tudo: João Nogueira: discobiografia, por Luiz Fernando Vianna, e o livro percorre a vida e as histórias do grande sambista em torno de 20 de seus discos, todos eles muito dignos de frequentar nossos ouvidos.

Antes que essa conversa vá longe demais, necessário começar a dizer que me dispus a escrever sobre este assunto para falar que entre nós, os capixabas, também temos autores que escreveram livros capazes de orientar-nos pelo mundo da música. Refiro-me aqui a quatro deles. Dois desses autores são literatos de cujas páginas saltam indicações que são verdadeiras maravilhas para os ouvidos. Os outros dois são capixabas que vêm dedicando a vida à música não só como músicos, mas também como críticos e historiadores. Pela ordem cronológica da publicação dos livros, aí vão eles.

Dois graus a leste, três graus a oeste

Este livro, cujo título traduz as famosas coordenadas de John Lewis, criador do tema “Two degrees Eastthree degrees West”, tem como autor o purista amante de jazz Reinaldo Santos Neves. Para ele, não por acaso, a escolha do título tem a ver com o próprio território do jazz na geografia imaginária de John Lewis, algo entre Nova Iorque e Califórnia, o que representa todos os Estados Unidos, berço e túmulo do jazz. Não sei se Reinaldo gosta de ser referido como “purista” (ou como “amante”, talvez prefira “ouvidor” de jazz). Mas é inegável que o andamento de Dois graus a leste, três graus a oeste não tem contemplação quando se trata de demarcar o território dos ouvidos de suas personagens. Quer uma prova? Leia o trecho pinçado do livro:

- Músico de jazz tem mais é que morrer cedo - diz Garibaldi.

- Mas por que você diz isso, Garibaldi?

- Por uma razão muito da simples. Porque quase todos os músicos de jazz chegam a um ponto de suas carreiras em que inevitavelmente danam a fazer merda. Em vez de amadurecerem com a idade e consolidarem a música de bom gosto que faziam antes, não: em vez disso, por dinheiro ou por doideira, danam a fazer merda sobre merda.

Dois graus a leste, três graus a oeste, “floresta de crônicas em folhetim” sobre a vida e sobretudo as opiniões de Garibaldi, que além de ouvidor de jazz é “amador de mulheres, poeta amador e funcionário público aposentado por justa causa, e cidadão nato, chato e residente na mui leal e valerosa cidade de Nossa Senhora da Vitória do Espírito Santo”, é sobretudo um desses livros que se ouvem. Ao longo de suas mais de quatrocentas páginas, além de encontrar as divertidas aventuras e controvertidas opiniões de José Garibaldi, o leitor poderá seguir, confiável de sua origem e do que de melhor o jazz produziu, a trilha-sonora que brota dos diálogos de Garibaldi com seu criador.

Este livro nasceu bem diante de nossas barbas, nós os sócios do Clube do Jazz, cujo nome de batismo é Clube das Terças-Feiras. Reinaldo nos colocou a todos em suas páginas. Trouxe de nós o melhor das idiossincrasias e das ranzinzices musicais que ficam entre os limites de gratuitas, fajutas ou convictas, reduzindo a si próprio e a nós à figura de José Garibaldi Magalhães, “ouvidor-mor do jazz e sócio majoritário do Clube das Terças-Feiras”. Ficando por aqui com as revelações (ou suposições) é hora de recomendar que se leia e se ouça Dois graus a leste, três graus a oeste, um belo livro que nos fala do fino gosto musical desse cidadão Garibaldi e acaba por ser um belo roteiro para quem deseje conhecer o que de melhor o jazz produziu.

O assunto é música

Foi preciso que Rogério Coimbra fizesse 70 anos para que se decidisse comemorar dignamente sua atividade de crítico musical reunindo escritos de quase cinquenta anos de atividade num livro essencial. Essencial, disse e repito, porque, como bem nos adverte o editor Alfredo Andrade, os textos reunidos no livro de Rogério “funcionam como uma preciosa bússola para ouvintes que se preocupam com o que estão ouvindo”.

O livro, publicado em 2017, surgiu também bem diante de nossas barbas, os sócios do Clube das Terças-Feiras. O presidente do Clube, Reinaldo Santos Neves, literalmente colocou todos os dedos nesse projeto, responsabilizando-se pela digitação e edição dos textos e, suspeita-se, lutando aguerridamente para tirar Rogério do cerrado casulo de sua modéstia.

Rogério Coimbra, no que quer que tenha feito na área cultural - e não foi pouco - é um precoce. Assim é que precocemente nasceu o crítico, mal saído dos cueiros e em plena adolescência. Em 1964 surge sua primeira crítica, publicada no jornal A Gazeta. Os apressados se apressariam a concluir que se tratasse de uma participação esporádica de um garoto de dezessete anos enfiada na pauta por algum amigo jornalista. Não é bem assim, a verdade é que o garoto Rogério Coimbra assumia uma coluna, justamente com o título “O Assunto é Música...”. Apresentado por Oswaldo Oleari, que dele diz ser “identificado nos melhores grupos de colecionadores de discos, estudante de violão da academia de Maurício de Oliveira, apreciador de jazz e outras bossas”. E para não dizer pouco de Rogério Coimbra, sempre bom lembrar de sua atividade na área cultural: subsecretário de Cultura do ES, diretor de Cultura do município da Serra, primeiro secretário-executivo da Lei Rubem Braga, produtor cultural e fonográfico (inclusive da Philips), radialista e um pesquisador dedicado à música e assuntos correlatos.

Neste livro, Rogério Coimbra escreve sobre todos os gêneros e todos os artistas: de Marquinhos Satã a Paulinho da Viola, de Oswaldinho a Deep Purple. Mas já no primeiro texto adverte: “Deus é testemunha - o ouvinte brasileiro está sempre sofrendo e parece que quer mais sofrimento ao consumir música deteriorada, adulterada, de péssima qualidade.” Então, bom que se diga com o editor Alfredo Andrade, o livro de Rogério Coimbra é uma bússola sobre o que ouvir e o que não ouvir. Aí está, pois, uma afirmativa abaixo da qual assinaria se preciso fosse assinar: O assunto é música é guia certeiro para os dias difíceis que vivem nossos pobres ouvidos. Rogério Coimbra, em matéria de música, sabe mais que muito, sabe tudo.

Doxa: brevíssimas opiniões não tão politicamente corretas sobre cinema, música, livros

Francisco Grijó é sobretudo uma pessoa ligada ao livro. Ele mesmo diz: “Sou do tempo em que a literatura valia a pena. (...) Tenho 51 anos e posso dizer - até repetir - que no meu tempo os livros valiam a pena. Eu explico. Sou professor há mais de 30 anos, e amo tanto os livros que chego a produzi-los. Amo-os e respeito-os não só por serem meu ganha-pão, mas principalmente porque é deles - também - que provém a civilização.” Francisco Grijó produziu e publicou quase uma dezena de livros: contos, romances e uma biografia de Os Mamíferos, banda que foi a vanguarda da contracultura musical no Espírito Santo. Aliás, não fosse por Doxa, é com esse livro, Os Mamíferos: crônica biográfica de uma banda insular, que já se pode falar da inclusão do nome de Francisco Grijó nessa lista de autores de livros que se ouvem. Mas vamos a Doxa.

Doxa, verbete da filosofia, define um conjunto de ideias e juízos generalizados e tidos como naturais por uma maioria. Doxa, o livro publicado em 2021, contém pequenos artigos de opinião ou crônicas (o autor prefere classificá-lo como um livro de crônicas, pouco importa o que pensem os acadêmicos). Sendo ou não assim, o autor logo esclarece a natureza de seus pitacos: “As opiniões expressas aqui têm um único dono e senhor: este que fala a você, leitor: eu, Francisco Grijó.” O livro reúne sessenta e oito crônicas quinzenais publicadas em A Gazeta entre julho de 2011 e dezembro de 2015. Nelas o autor exibe “a mesma liberdade que demonstra em suas conversas com amigos”. Para quem não concorde com ele, Francisco Grijó garante que “quem não tem medo de expressar suas opiniões também não deve ter medo de mudá-las”. Este é Francisco Grijó, cidadão e escritor a cujas opiniões, por sua lucidez e justeza quase cartesiana, deve-se sempre dar a justa atenção.

Vamos à questão posta no mote deste artigo, ou seja, a música. Doxa, posto contenha os mais variados temas, alguns deles falam sobre músicas e músicos, já que Francisco Grijó é conhecido por apreciar a boa música, principalmente o jazz e a música brasileira. Seja revelando a inusitada parceria musical de Vinícius de Moraes e João Bosco (parceria que o enfiou numa cômica enrascada), seja confessando sua paixão por Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso, seja tirando sarro das duplas sertanejas e do famigerado rock feito no Brasil, ou seja ainda rememorando melancolicamente os 35 anos de morte de John Lennon e 21 de Tom Jobim, em boa parte das crônicas deste livro existe uma trilha musical que não só poderá nos falar do requintado ouvinte Francisco Grijó, mas também, posso garantir, terá por conteúdo muita novidade e será um guia para quem desejar ouvir o que de melhor a música produziu.

Os sons da memória: uma leitura crítica de 40 discos que marcaram época na música do Espírito Santo

Os livros de José Roberto Santos Neves, pesquisador musical, músico e editor do Caderno Dois de A Gazeta por vários anos, mereciam um artigo inteiro sobre aqueles que se ouvem. É que além de Os sons da memória ele publicou vários outros, todos eles sobre música. Tome nota: Maysa (2014, a primeira biografia da cantora Maysa), A MPB de conversa em conversa (livro de 2007, contém 40 entrevistas com grandes nomes da música brasileira), Rockrise: a história de uma geração que fez barulho no Espírito Santo (2012) e Crônicas musicais e recortes de jornal (2015). Sendo baterista, gravou os CDs “Hidden melody” (The Rain, 1994) e “Todo dia é dia de blues” (Big Bat Blues Band, 2003). Como pesquisador da música, é verbete no Dicionário Cravo Albin da MPB.

A escolha de Os sons da memória para ser referida neste artigo não foi aleatória. Embora todas as outras obras do autor sejam altamente recomendáveis para quem se interesse por música, este é o primeiro, e até o momento único, livro dedicado à produção fonográfica do Espírito Santo, feito com a maior amplitude possível, cobrindo um período que vai da década de 1980 até os dias atuais. E não se trata apenas de leitura crítica dos quarenta discos analisados. O livro de José Roberto Santos Neves faz muito mais, apresentando ao leitor detalhes das gravações e dados biográficos valiosos de músicos capixabas ou ligados ao Espírito Santo.

A grande dificuldade para se ouvir este livro está no acesso aos discos. Muitos deles só foram lançados como LPs e só com muita sorte podem ser encontrados em sebos. Mesmo os discos lançados em CDs não são facilmente encontráveis. É como se diz à boca miúda: a arte capixaba é subjacente, nossos produtos culturais necessitam de garimpo árduo e dedicado. Com sorte e persistência se encontram alguns deles na Internet ou em serviços de streaming, mas não há garantia. Abro parêntese: desconfio que um grande facilitador para o trabalho de José Roberto Santos Neves foi o acervo de seu pai João Luiz Santos Neves - a quem o livro é dedicado -, notório colecionador de discos de vinil e garimpeiro dedicado de raridades fonográficas. Fecho parêntese. Por sorte, absoluta sorte, tenho em minha coleção os LPs “50 anos de música e seu capixabismo”, de Pedro Caetano, “Dedos em destaque”, de Aquiles Siqueira, “Agite antes de usar”, de Aprígio Lyrio e “Notícias de Paris”, de Ester Mazzi, além de alguns dos CDs constantes da lista de discos analisados. Apesar da dificuldade, desejo sorte e persistência para quem decida acompanhar a música oferecida neste livro. Garanto que todo esforço será recompensado.

Finda aqui a tarefa de escrever, é hora de retornar ao prazer da audição. Não só por dever de dar lastro ao que disse neste artigo, mas pelo real deleite de usufruir a boa música em tão boas companhias. Garanto que ela sobrevive, apesar do espesso matagal sonoro. Os livros citados aqui provam isso. Se for o caso de interessar-se o leitor por eles, desejo uma boa audição.

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