“Você não sabe, meu rapaz, nem precisa saber, que tenho obsessão por histórias. É preciso livrar-se delas, senão nos tiram o sono, o sossego e o resto. Histórias são como as ervas daninhas, que terminam por matar uma árvore inteira”. Pode-se atribuir essa emblemática confissão do narrador de “Teorema”, conto de A última noite, ao seu próprio demiurgo, o escritor Pedro J. Nunes. No entanto, por incessante que seja a febre de todo autor em dar a conhecer ao leitor suas criaturas, Nunes não se desincumbe dessas obcecantes narrativas como quem se livra às pressas, seja como for, de um fardo insuportável. Se é verdade que seu leitor deverá acostumar os olhos à luz fraca da especulação rasteira dos narradores e ao ambiente socialmente penumbroso dos personagens, também é verdade que deverá deixar na entrada da gruta a ansiedade do desenlace. A prosa de Pedro J. Nunes não tem pressa. Valoriza, antes, a degustação do conflito e exercita a malícia de convocar o leitor a uma deleitosa e, por vezes, perversa cumplicidade, ora fazendo-o participar da especulação do entredito, ora inserindo-o no desnudamento do personagem sem aviso prévio. Porque já no preâmbulo, ao delinear a localização de Assunção, palco suburbano capixaba onde gozam e sofrem seus seres passionais, A última noite diz entre dentes, insinua talvezes, semeia indefinições: “O correto é crer que haverá uma história de Assunção, pois que um bairro, por mais pobre e desmemoriado, não nascerá de um dia para o outro [...]”.
Esse futuro do presente, artifício formal que frequenta assiduamente todas as narrativas, menos uma, marca as manobras de conjetura que o autor se propõe, no exercício de aliciamento na onipresente maledicência de Assunção. Ao lado desses narradores de Nunes, na obscuridade do conhecimento sempre lembrada por esse futuro do presente, o leitor é levado a indagar de cada meandro escuro o que seria se...
E há muito que indagar dos entreditos desses personagens esquerdos. O narrador de “Teorema”, embora perito em identificar golpistas, não recebe a honra que supõe merecer, ameaçado pela própria idade e sob risco de perder o ganha-pão: “vamos assim até que me troquem por alguém que, além de mais novo, contente-se com um cheque menor”. É do horizonte dessa vilania precária que ele vislumbra a torpeza do vilão propriamente dito, revelando-o ao leitor como assassino da mulher e do filho. Com declarado asco e desprezo de(s)compõe em generosidade de linhas os dois indivíduos, patrão e lacaio, que se desnudam sob sua palavra ácida em camadas de sordidez. É deste último, porém, com seu crime dissimulado e culpa coberta pela incompetência policial, que trata detidamente, fazendo-o sofrer o desconforto da verdade íntima e incômoda, desmascarando implacavelmente a trama aos olhos do leitor e do próprio antagonista, que se vê desnudado em sua dissimulação.
Essa atmosfera de contingência e sordidez se faz presente já no primeiro conto, com nuances variadas de tensão. O refrão proferido pelo francês Josephin em “Eventos de gente trágica: romance breve” dá a medida da incompletude dos personagens de Nunes, tanto quanto do pathos que os arrasta ao limite: “Maria Madalena procurava minha boca quando sentava em meu ventre. Recendia a almíscar e fumo e suor e ao amanhecer ofertava os dons melados de seu corpo. Não encontrava amor em minha boca. E não é porque fosse de outra. É que não existia. Não ia oferecer mentiras”. É uma ventania que une esses amantes deserdados de êxito nas relações amorosas, um acaso comparável ao que une os amantes de “Violeta”. E já que o acaso não oferece ele próprio as histórias ao leitor, a especulação e a maledicência buscam preencher as lacunas da informação, num livre exercício de construção de boatos, que acertam em cheio no retrato de uma realidade tão fluida e arredia. Afinal, “Se os recém-chegados não nos oferecem elementos suficientes para formarmos um contorno de sua história, nós a forjamos e passamos a acreditar em cada vírgula do nosso enredo. As histórias correm mudas e implacáveis, compondo-se de caquinhos recolhidos em nosso dia a dia.”
Em “Nicodemos, o matador”, cabo Anacleto e Nicodemos são duplos que se entremeiam, tendo como fiel da balança a prostituta Ritinha, amante compartilhada pelos dois homens. É muito significativa, nesse aspecto, a alternância dos protagonistas na casa da amante comum, significante do seu equilíbrio de forças, numa amizade que suplantou a clássica perseguição da lei ao crime. Mesmo ao prender Nicodemos, Anacleto respeita seu direito à posse de Ritinha, sem invadir o tempo pertencente ao outro no usufruto da mulher de ambos: “[...] E uma atitude dessas seria indigna entre amigos. Anacleto era homem de princípios, não ia aproveitar-se da ocasião. Por isso a amizade entre os dois se havia solidificado”. Esse equilíbrio moral, ameaçado quando da prisão de Nicodemos por Anacleto, pelo assédio daquele a Aníbal, no intuito de fazer do vendeiro um mandante, tamanho o anseio de matar, não se compromete por muito tempo: tendo Nicodemos honrado o voto de confiança do cabo, que não o prendeu pelo duplo assassinato a ele atribuído, contra toda a pressão superior, recebeu como recompensa prova da lealdade do pistoleiro: ele próprio trata de executar o verdadeiro assassino e provar sua inocência. Ou seja, embora a lei e sua transgressão estejam em lados bem definidos, não são de todo estanques. Além dos carinhos de Ritinha, policial e matador dividem a honra e nutrem a amizade. Por linhas retas ou tortas, os protagonistas escrevem a letra possível, interpretando a justiça conforme as possibilidades do momento.
A primeira experiência sexual do narrador de “Violeta” é mediada pelo imponderável, mas também pela impureza. Os dois amantes mergulham na intimidade mútua a partir da cinza, esse resíduo de ignição por vezes disposto a atear novos fogos. O adolescente conhece as delícias do corpo da personagem-título por meio de um acaso que o precipita nas boas graças do seu objeto de desejo. Esse acaso tecido para aproximar os corpos dos amantes reúne os signos cinza/fogo e sujeira/sexo, entrelaçando-os num duplo eixo: “Então o diabo cuidou de me vingar. Violeta escorregou no limo do quintal íngreme e caiu com as pernas abertas, a saia subiu até as costas, deixando ver as dobraduras dos recantos mais escondidos do seu corpo. O prato de cinza voou de suas mãos e um pouco de cinza caiu em seu colo e em seu rosto. Violeta ficou cega e entrou num desespero cheio de xingamentos guturais incompreensíveis. Antes que pudesse gozar sua meia nudez, enchi uma caneca d’água e peguei uma toalha, indo em seu socorro. Tomei a cabeça dela entre as minhas pernas.” A frase de Violeta “Estamos os dois bastante sujos” sintetiza a travessia da ponte que leva do desejo represado à descoberta e ao pleno gozo dos amantes. Cruzado esse umbral pela impureza, o casal está livre para a livre entrega que, muitos anos mais tarde, atrairá ao lugar da descoberta o herdeiro da experiência.
Em “A última noite”, merece destaque a analogia entre cada pé de sapato do conto e cada homem a marcar a vida de Adélia com o signo do abuso. Ao juntar o par de sandalinhas pobres e vermelhas (cor sintomática do sexo), Adélia se apodera do desejo antes interditado pela violência do pai e mais recentemente sofrida do marido. Sua pobreza, denunciada pela simplicidade da sandália, não a impede de se apoderar do desejo reprimido e recuperar seu lugar de sujeito. Desaparecida no interior da viatura policial e tendo caído do pesadelo da submissão “numa doce realidade”, Adélia estava mais livre do que nunca, tendo matado seus algozes masculinos e com eles, seus fantasmas.
E se de fantasmas se trata, certamente não passará despercebido pelo leitor de “A abantesma do bairro Assunção”, em meio à atmosfera sobrenatural, o íntimo conluio entre prazer e interdição. Sob o moinho das convenções sociais cruelmente guardadas por Silviano Teles de Azevedo, sua filha e um escravo, anônimos e trágicos, alçam voos furtivos movidos pelo prazer da liberdade carnal. Mas se nos dias felizes dessa trapaça a única fronteira violada separava os territórios do senhorio e da servidão, a transgressão desse marco introduz os amantes na travessia bem mais pungente do limite entre vida e morte. Sobrevive a lenda no relato de Melquíades, regado pelo álcool que – novamente – garante a porção de incerteza a temperar as narrativas dessa gente trágica na penumbra da invencionice popular e da especulação imprecisa.
O futuro do presente especulativo que, como já dito, permeia quase todas as narrativas e confere o tom de dúvida muito caro ao desenrolar das tragédias e das torpezas só não figura no último conto, “Mariposa noturna em veranico de maio”. Mas isso não se deve puramente ao hiato cronológico em relação à criação das demais histórias, como já adverte o autor no preâmbulo. Aqui, em vez do entredito, da imaginação à socapa, prevalece outra estratégia de Nunes: ele escancara ao leitor desde a trajetória de Albertina do interior à capital até a cena da sua concupiscência vaidosa, para um deleite quase cinematográfico do leitor, numa frase emblemática que convém grifar: “Vestiu a minúscula calcinha vermelha que a mão alcançou – não é uma afronta, meus caros e abestalhados senhores? –, ofereceu as ancas ao espelho, as mãos atravessaram no pescoço um colar de pérolas falsas que brilhavam como pérolas nobres [...]. O universo psicológico de Albertina já estava construído pela descendência de infelizes, mãe carente e pai hipocondríaco, e antes que o futuro espelhasse essa “grandeza”, ela abriu a própria estrada para os maus tratos de Maurício – tão sórdidos quanto saboreados –, o olhar e as mãos do tio Guilherme e a prostituição, sustentáculo da sua vaidade. E aqui o termo vaidade revela, como se a palavra se escandisse ao aproximar os detalhes da cena, sua raiz: a vaidade, qualidade do que é vão, vazio, é o que sustenta a sensualidade de Albertina. São aparências de nobreza que sustentam um padrão de vida incompatível com a mesada dos pais e o ganho como vendedora. Uma vaidade que idealiza seu provimento: o nome Alberto (de onde deriva Albertina), como nos informa uma breve consulta ao site Behind the Name, é uma variante do nome Adalberto, originado no germânico Adalbert, composto de duas palavras, adal ("nobre"), e berth ("ilustre" ou "brilhante"). Promessa etimológica de que zomba sua vivência, já que, enleada na própria vaidade, tudo que Albertina quer é a aparência do brilho da nobreza, contraponto mais promissor à sua origem turva e desencantada do que a carreira que os estudos na capital permitem vislumbrar. Ou seja, o homem cobiçado é ideado a seu bel-prazer porque reflexo de si mesma, assim caracterizado na raiz do nome e no imaginário do personagem: “Alberto será como eu quero”.
Se cabo Anacleto não é homem de duas conversas, Pedro J. Nunes não é demiurgo de uma só receita. Ora sugerindo cenas e desdobramentos, ora desvelando-os, ele é detentor desse poder de fogo caro aos apreciadores da literatura: uma trama que se movimenta, ora entre suspeições, ora mediante minúcias, mas acima de tudo, meditada, deslizando rumo ao desfecho, não para ser consumida, mas saboreada.