Histórias curtas para Mariana M.

Francisco Grijó

Mariana Mentrix realmente existe – com outro nome de família e um outro prenome, naturalmente. Nasceu nestas páginas e viverá para sempre nelas, transformada contra a própria vontade em personagem, alma e anatomia. Foi modificada para que se adequasse melhor ao texto, à história que protagoniza. Talvez seja um bom destino para ela, talvez não. Há quem veja benefícios em se tornar criatura que corre ou plana pelas páginas impressas, embora eu tenha minhas dúvidas quanto a isso.

Em certa ocasião, conversando com um amigo, também escritor, ouvi dele a tese de que Vitória, por ser uma ilha, é o cenário adequado a uma boa história. Citou Homero, Odisseus, Penélope, Telêmaco. Ítaca era uma ilha. Bem, o Japão tem mais de três mil delas e nem por isso se gaba tanto. O Arquipélago de Bornéu ou a República de Seychelles muito menos. Mas a cidade de Vitória é o ambiente desta história – aliás, várias, tecidas entre si como os fieis e pacientes fios de Penélope – de assassinato, amor, elucubrações existenciais, desespero e metalinguagem. Há também uma bactéria misteriosa, maléfica.

Este livro, embora muitos possam pensar o contrário, não é um romance policial. Nunca pretendeu ser, de fato, mas alguns de seus ingredientes são expostos nas páginas de forma que isso possa confundir o leitor. Há um detetive em uma das histórias, assim como há alguns assassinatos. Há investigações, pistas, reviravoltas, policiais e facínoras. E também advogados. Tudo leva a crer que se trata de uma história policial, mas não é. É uma história comum, e que já foi contada quase à exaustão, por centenas de anos: uma história de amor e de dor.

A literatura, de um modo geral, é homenageada neste livro. A literatura policial também, assim como são homenageados aqueles que a produziram. As fotos, suas, dispostas no texto, foram retiradas da web, ali disponíveis. Sei que muita gente torce o nariz para tramas de assassinatos, detetives, corjas e punições. Sei também que muita gente torce o nariz para a lei. E que muita gente torce para que o fora da lei leve vantagens ao final de tudo. Muitos dos autores citados – de urdiduras policiais ou não – têm seus livros editados no Brasil e muitas das edições podem ser encontradas em livrarias ou em sebos espalhados pelo país. Há alguns desses sebos no mundo virtual. Há quem considere a literatura policial um gênero menor; outros a veem como subliteratura, como é o caso do narrador de uma das histórias deste livro. Ele é um homem exigente. Chega a ser pedante, mas tem seus motivos. Na verdade, tinha. A essa altura, ele já deve estar morto.

A história deste livro se passa no início da década de noventa, século XX, agora relegado ao plano de século passado. Não está tão distante assim. É possível, à minha geração pelo menos, lembrar-se de como o mundo funcionava naquela época. Pouca coisa mudou. Todos os personagens deste livro são fictícios – exceto, como eu disse, Mariana Mentrix. O caso de amor e morte passado nos anos 50, em Vitória, também é fictício. Os saudosistas vão retornar no tempo e não encontrarão a cidade exatamente como a deixaram, é bom que se diga. Algo foi modificado porque assim é o jogo da ficção – sempre uma armadilha àqueles que fazem da memória seu patrimônio mais valioso. Não tive a intenção de fotografar fielmente a cidade, embora o tenha feito em algumas passagens do texto. A geografia insular básica está no livro, incorrupta. Como eu disse, a história de amor e morte não passa de invenção. Se o leitor encontrar relação com algum fato realmente acontecido, saiba, de antemão, que as coincidências fazem parte da vida e delas se alimenta a literatura. Aliás, a arte. É o que dizem.

Optei por expressões em latim para separar as partes do livro. Lapsus Calami, Erro de Pena. Rustica Veritas, A Rude Verdade. A última expressão é o nome de um filme, uma película fictícia, como o leitor poderá comprovar. Como este é um livro que aborda – também – assassinatos, nada melhor que uma língua morta para ilustrar o que vem por aí. Todo este livro, toda a história, é marcado pelo jogo temporal. Há vários pretéritos que se misturam, assim como futuros, incluindo o condicional – meu preferido. Eu sempre quis fazer isso. O tempo presente não interessa a nenhum personagem das histórias que se cruzam. Também não interessa aos narradores, como vocês poderão perceber. Este é um livro sobre a suposição, sobre a probabilidade, e muito há de nostalgia – e de possível desolação – na forma verbal composta “poderia ter sido”.

Agradeço a meu pai por esse livro existir. Ele sabia contar histórias, muitas delas eu aproveitei neste e em outros livros. Agradeço também a alguns amigos. Cada um colaborou de uma forma, fornecendo direções preciosas, dicas essenciais. Dois deles: Pedro Nunes, que me fez entender como funciona – ou como deveria funcionar – o cérebro analítico de um detetive. E como funcionam chefaturas, delegacias, academias e investigações. Rosa Torres deve muito a ele e o leitor também poderá comprovar isso. E Heraldo Brasil, grande amigo de meu pai, e que, junto com ele, proporcionou-me, em parte do texto, a volta a um tempo que não conheci – Vitória, de 50 anos atrás.

 

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