Talvez não se ache, entre as pessoas dadas a leituras, por assim dizer, nenhuma que não tenha ouvido falar, pelo menos, na estranha novela Die verwandlung, do tcheco Franz Kafka; essa novela já foi traduzida em português, algumas vezes, e em outros idiomas conhecidos nossos, quase sempre com o título A metamorfose; The metamorphosis em inglês, La métamorphose em francês, La metamorfosis em espanhol, etc.
Mas o simples fato de existir também na língua alemã a palavra Metamorphose, preterida por Kafka em favor de Verwandlung, desautoriza, a meu ver, essas traduções do título agora famoso, tanto mais quanto o professor Modesto Carone, em extensa matéria jornalística publicada na Folha de São Paulo “ilustrada”, reconhece expressamente que Kafka era um “etimologista amador”. Em vista desse reconhecimento, a meu ver nada impede e tudo como que justifica a preferência de algum tradutor pelo verbo português “transformar” (quando não “transmutar”) para traduzir o verbo alemão Verwandeln, que não seria, pelo menos não exclusivamente, “metamorfosear”.
Em tudo isto penso agora ao ler A metamorfose de Franz Kafka na tradução do professor Carone, publicada em São Paulo pela Editora Brasiliense. E releio, a propósito, aquela matéria jornalística do mesmo professor Carone, na Folha “ilustrada”, a que me referi.
Na matéria jornalística citada, o professor Carone faz uma porção de observações sobre aspectos controvertidos desse controvertidíssimo assunto que é a tradução, os quais não pretendo discutir aqui para não levar longe demais o leitor desavisado.
Quanto à tradução propriamente dita, o professor Carone faz questão de realçar que ele traduziu o verbo alemão verwandeln pelo português “metamorfosear” – e não por “transformar” (“como fizeram outros tradutores, inclusive o nosso Marques Rebelo”, sic).
Pois ao lado de quem traduziu verwandelt por “transformador” estão o poeta inglês Edwin Muir e sua mulher alemã Willa, e o tradutor francês Alexandre Vialatte, sem falar no argentino Jorge Luís Borges, cuja tradução o professor Carone considera “belíssima”; Borges foi ainda mais longe, e traduziu verwandelt por “convertido”.
As traduções brasileiras de que disponho no momento são duas: a do professor Modesto Carone, e uma “nova e primorosa tradução” de Syomara Cajado, publicada pela Nova Época Editorial e baseada numa tradução intermediária norte-americana ou inglesa, pois o título dado como “original” é The metamorphosis. E tenho ainda uma tradução portuguesa de Teixeira Aguilar, editada pelas publicações Europa América. Dessas três traduções em nosso idioma, a do professor Carone me parece a melhor, sem dúvida.
Mas, ainda assim, o professor Carone me dá a impressão de haver laborado em alguns equívocos. Ele mesmo diz, naquela Folha de São Paulo, que “aparecem no original, em rápida sucessão, três negações representadas pelo prefixo alemão un”. A esse un alemão corresponde, em alguns casos, o prefixo português in, que é também “de negação” às vezes, nem sempre: podem se alinhar, por exemplo algumas palavras começadas por in e que não encerram ideia “de negação”: in-jeção, in-ocular, in-ício...
Vejamos as palavras iniciais da novela de Kafka, nas traduções em português que tenho:
MC: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso... Suas inúmeras pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante de seus olhos.”
TA: “Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto... As inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, comparadas com o resto do corpo, agitavam-se desamparadamente perante os seus olhos.”
SC: “Ao despertar pela manhã após ter tido sonhos agitados, Gregor Samsa encontrou-se em sua própria cama transformado num inseto gigantesco... Suas inúmeras pernas – miseravelmente finas comparadas ao resto do volume de seu corpo – agitavam-se desordenadamente ante seus olhos.”
Quanto à observação do professor Carone, que condena outros tradutores pelo fato de darem a impressão de que o personagem “encontrou-se transformado em sua cama”, em vez de dizerem que Samsa “encontrou-se em sua cama, etc.”, cabe lembrar que tanto Vialatte quando Muir fizeram traduções semelhantes: he found himself transformed in his bed e Samsa s’éveilla transformé dans sons lit... Apenas, em inglês e francês, as preposições diferem e conduzem o pensamento a outras interpretações; o que não ocorre em português, por exemplo. Mas um bom par de vírgulas seria capaz de restituir à frase o sentido mais adequado, quero crer.
Pouco adiante, o professor Carone traduz Menchenszimmer por “quarto humano”, e eu me pergunto: que será isso – “quarto humano”? Vialatte traduziu como chambre d’homme, bem melhor a meu ver, e Borges como habitación de verdade, menos bem...
Qual seria, então, a melhor tradução de Menchenszimmer? “Quarto de gente”, talvez...
Adiante, o professor Carone traduz er versuchte es wohl hundertmal literalmente como “tentou isso umas cem vezes”... Tenho para mim que o número “cem” representa no texto o número indefinido e impreciso, o nosso “mil” mais que o nosso “cem”: a tradução melhor seria, creio, “tentou mil vezes”... É mais um caso a pensar, mas sem nenhuma autossuficiência, pois o traço principal do caráter de um bom tradutor é antes o da humildade: outras soluções podem ser também admitidas como corretas ou, pelo menos, bem aceitáveis.
Outro ponto em que a tradução do professor Carone me parece deixar a desejar é onde ele traduz seinen vielen... Beine por “suas inúmeras pernas”, equívoco em que incorrem outros tradutores: ora, um inseto, por mais “monstruoso” ou “gigantesco” que seja, não há de ter, por definição, mais de seis pernas: que podem ser “muitas” (vielen) para quem está habituado a apenas duas na vigília; “numerosas” talvez, “inúmeras” nunca.
Sem ir mais longe, para não cansar o leitor, creio ter deixado bem claro que a tradução de A metamorfose, de Kafka, pelo professor Modesto Carone, não é por certo a melhor, nem, em hipótese alguma, a única, embora feita “diretamente do alemão”, como fazem questão de alardear o tradutor e o editor – o que, aliás, com a proliferação dos cursos de língua alemã no Brasil, em nossos dias, não chega a constituir vantagem nenhuma.
Publicado originalmente no jornal A ORDEM, ano LXII, São José do Calçado, domingo, 09 de outubro de 1988, nº 2477.
Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e a Academia Calçadense de Letras.