Quando eu estava na Romênia, a convite da União dos Escritores Romenos (também convidados foram comigo o editor Enio Silveira e o jornalista Paulo Silveira, os quais, embora com o mesmo sobrenome, não são parentes), quase todo dia lá ia eu à Embaixada da URSS e à da China, e lá, em cada uma delas, eu repetia a mesma lengalenga: – “Sou escritor brasileiro, e estou aqui ‘pertinho’. Qualquer dia destes vocês vão me convidar, mesmo, a visitar seus países. Por que não aproveitam esta oportunidade?” De tanto que insisti, um belo dia me disseram, na Embaixada da URSS, que havia um “convite” para mim, sim, para eu ir a Moscou tomar parte num “Festival da Juventude Comunista”. Pensei primeiro em recusar, mas estava ali “tão pertinho” que achei mais conveniente aceitar, e lá fui eu, depois de um mês em Bucareste, rumo a Moscou. Em Moscou não havia ninguém à minha espera, no aeroporto; falei com várias pessoas, em inglês ou em francês, e daí a pouco apareceu um automóvel que me levaria a “meu hotel”, etc.
Agradeci, embarquei no tal automóvel, e fomos. Foi um tal de andar de carro que eu não esperava, e acabei descobrindo que “meu hotel” era onde ficaria a “delegação brasileira”, na outra ponta da cidade, longe como o diabo... Lá, fui designado para “morar” num mesmo quarto com mais três brasileiros, um deles com uma gripe brabíssima; e por mero acaso peguei “no ar” a informação de que Jorge Amado estava em Moscou. Procurei saber onde, e telefonei para Jorge, no hotel onde ele estava, num dos bairros centrais da cidade. Jorge atendeu ao telefone com aquela alegria de baiano bem humorado que ele tem e me chamou “sem demora” para eu pegar um táxi (argumentei que eu não tinha rublos, só tinha dólares, e ele disse que pagaria o táxi para mim), etc., e que eu fosse para Ukraiana Hotel, onde ele estava. Comecei a pensar no táxi, mas logo fiquei sabendo que dali a poucos sairia do “meu hotel” um ônibus, que deveria passar pelo hotel Ukraiana. E peguei o tal ônibus, e daí a poucos quilômetros lá estava eu no apartamento de Jorge Amado e Zélia Gattai, que me acolheram com baiana simpatia e hospitalidade. Mas já no dia seguinte, Jorge e Zélia embarcariam num jato rumo à Tchecoslováquia, e no dia seguinte lá fiquei eu, meio perdido, no grande hotel Ukraiana. Tentei alugar um apartamento (uma suíte) no hotel, mas, com o meu cartão de “convidado”, o Ukraiana não me aceitava como hóspede pagante – pois eu tinha direito a hospedagem gratuita. Um horror!
Era uma luta minha contra o poder burocrático: eu troquei uns dólares por rublos, numa agência bancária que havia no saguão do hotel, e andei fazendo umas refeições em restaurantes próximos, pois no Ukraiana eu não tinha quem me servisse, por mais caro que eu me dispusesse a pagar. E foi quando aconteceu uma coisa esquisitíssima: a “comissão” do Festival da Juventude, com alguns representantes do hotel Ukraiana, sem saber ao certo como resolver minha situação, queria porque queria que eu voltasse lá para aquele fim de mundo onde ficava “meu hotel”, com gente gripada e tudo, e eu dizia que pra lá não voltaria, que achava melhor eu pegar um avião de volta para o Ocidente; e o pessoal da “comissão”, depois de vários “entendimentos” dos quais não participei, me veio com uma proposta que me pareceu bastante razoável: – “Como já está muito tarde, nós arranjamos um apartamento com banheiro para você passar esta noite aqui no Ukraiana, mas você vai nos dar sua palavra de honra de que amanhã, logo de manhãzinha, volta lá para o seu hotel, está bem?” Dei uma porção de palavras de honra, assumi uma porção de compromissos e afinal ganhei a chave de um apartamentinho num andar alto do Ukraiana. Retirei-me para meu canto, acabei de sobrescritar uns cartões e umas cartas para alguns familiares, tomei um bom banho de chuveiro, ouvi um bocado de música num rádio que só ligava para uma estação (como depois verifiquei), e desci para o salão, com fome e vontade de jantar. Fui convidado para sentar-me à mesa de Pablo Neruda, e com ele jantei nesse dia. No dia seguinte almocei com o romancista Miguel Ángel Astúrias. E até aí tudo bem. Mas já na hora do jantar do outro dia começaram as complicações, pois eu tinha rublos e tinha o “convite” do Festival – e uma coisa atrapalhava a outra: ninguém me queria servir, que eu era “convidado” e não podia pagar, essas coisas... Tive de jantar, mais uma vez, fora do hotel.
No dia seguinte, estava eu no saguão do hotel, postando umas cartas, quando no alto de uma escada apareceu Marina, que era “intérprete” de Jorge Amado, por quem eu havia sido apresentado a ela dias antes. E Mariana gritou meu nome, do alto da escada, e correu para mim: – “Mi querido, como le vá?” Contei a Marina meus entreveros, e ela tirou da minha mão o “convite” do Festival da Juventude, e sumiu com ele... Daí a alguns minutos, que me pareceram intermináveis, lá veio ela, de novo, com um cartão azul numa das mãos, a me acenar: – “Mira: agora tu eres huésped de honor del Festival de Moscú”. E, com meu novo “convite”, eu não pagava mais nada – era só mostrar meu “convite”. E todos me atendiam com maior deferência. Engraçadíssimo!
Publicado originalmente no jornal A ORDEM, ano LXII, São José do Calçado, domingo, 29 de janeiro de 1989, nº 2.492.
Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e a Academia Calçadense de Letras.