Perdoem-me meus concidadãos por eu insistir no tema – ou na tecla – da tradução: faço-o por ver que a tradução pode vir a ser o ganha-pão de muitos calçadenses, os quais nem por isso teriam de afastar-se de nossa pequena e tão simpática cidade capixaba.
Devo dizer que eu próprio em mais de uma ocasião vali-me de meus ganhos como tradutor para completar ou complementar meu orçamento doméstico. Nunca vivi exclusivamente de traduzir, assim como jamais em minha vida, ao que me lembre, tive uma fonte de renda só; sempre tive mais de um emprego, e sempre achei que esse era o melhor seguro desemprego – quando um me faltava, eu tinha sempre um outro, e assim por diante. E o ofício de traduzir sempre foi, assim, uma espécie de emprego complementar: era um dinheiro que eu ganhava “sem vínculo empregatício”, como se diz, pois eu não era “empregado” de editora alguma, apenas prestava-lhe meus “serviços” de tradutor e, por essa prestação de serviços, paga toda de uma vez, eu recebia uma remuneração que nem sempre era das melhores, sim, mas tampouco era das piores.
Como algumas pessoas me consideravam um “bom” tradutor, um belo dia fui parar na Editora Ypiranga que, com esse nome assim tão brasileiro, era como se chamava a editora que publicava no Brasil a revistinha Seleções do Riders Digest. A Ypiranga gabava-se de ter o melhor “time” de tradutores da praça (Rio e São Paulo), e pagava a seus tradutores, todos escolhidos, uma importância equivalente a dois dólares por página traduzida. Era de longe o melhor pagamento da praça, e todo o tradutor que se prezava queria fazer parte daquele “time” tão selecionado e tão bem remunerado. E assim traduzi, por muitos anos, para a Ypiranga; até que um dia – parece que chega sempre “um dia” – recebi para traduzir um artigo destinado à revista Seleções, e o raio do artigo era escrito num inglês tão “martelado”, como se diz, que ao ir entregá-lo eu não me contive e disse, em plena redação da revista, que “aquilo” era um inglês macarrônico da pior espécie, e nem sei mais o que mais disse. Mas, para mal dos meus pecados, ali estava sentado, entre os redatores de Seleções, o norte-americano autor do tal artigo, e que devia ser também figura de muita importância no staff dela... Sei lá: o fato é que nunca mais fui chamado a traduzir nenhuma linha para Seleções, para a qual eu vez ou outra fazia a tradução de um ou outro artigo (do inglês, sempre), Nem para traduzir qualquer daqueles romances “abridged” (que seriam “mutilados”, mesmo) para a coleção de “Grandes Romances” da Editora Ypiranga, sempre na base de best sellers. Traduzi alguns, sim, com alguma curiosidade: eu tinha o “direito” (até certo ponto) de escolher os livros que gostaria de traduzir, etc. Uma “vantagem” e tanto, que as editoras só concediam a alguns de seus tradutores. Posso dizer que quase sempre me foi concedida essa “vantagem”, e explico a razão disso: é que eu era tido e havido como um “bom” tradutor. E aqui vai mais uma recomendação para os possíveis futuros tradutores calçadenses: sejam “dos melhores”, se não “os melhores” em sua profissão – seja na profissão de tradutor, seja em qual outra escolherem... Os mercados de trabalho costumam estar sempre meio “saturados” (é um expedientes que os empregadores usam com o fim de obterem a qualquer momento mão de obra barata), mas para os “bons” sempre há lugar. E aqui começamos a focalizar a figura do “bom” tradutor. O que é um “bom tradutor”? É aquele que traduz bem, ora essa! E em que consiste esse “traduzir bem”?
O mestre norte-americano Eugene Nida diz que, ao se perguntar se uma tradução é melhor ou pior que outra, a resposta há de ser buscada na que se der a esta outra perguntinha: “melhor para quem”? De fato, uma tradução pode ser muito “boa” para fins universitários, por exemplo, e não ser assim tão boa para uma encenação teatral... Penso nas excelentes traduções universitárias de peças de William Shakespeare feitas pelo paulista Péricles Eugênio da Silva Ramos: como traduções para estudo universitário são excelentes, mas como textos para teatro são quase inencenáveis, cheios de palavras rebuscadas que o espectador dificilmente saberá o que significam – e isso, em teatro, é “pecado mortal”, como se diz. Explica-se: no texto em livro, o leitor pode voltar atrás na leitura, se não entendeu bem algum trecho, pode interromper a leitura e consultar um dicionário, por exemplo, mas no teatro isso não pode acontecer – pois, como se diz, o espetáculo não pode parar... Penso também em algumas traduções de peças clássicas gregas e latinas, feitas por Mário da Gama Kúri: excelentes para estudo universitário, péssimas para encenação... Tirantes essas qualificações de exceção, o tradutor há de evitar a confusão, então encontradiça, entre línguas – a chamada língua de partida, a língua da qual traduz, e a língua de chegada, a língua para a qual traduz. É claro que a competência do tradutor há de ser muito alta em ambas as línguas, o tradutor deve conhecer muito bem a língua de partida e a língua de chegada, esta ligeiramente melhor que aquela. Quero dizer que o tradutor deve conhecer um pouquinho melhor, a ponto de dominá-la mesmo, a língua para a qual traduz (que em geral é a língua materna do tradutor). E é natural, imagino, que a própria língua se conheça melhor que qualquer língua estrangeira, adventícia ou superposta, aprendida intelectualmente e não mais emocionalmente.
Publicado originalmente no jornal A ORDEM, ano LXII, São José do Calçado, domingo, 29 de janeiro de 1989, nº 2492.
Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e a Academia Calçadense de Letras.