Voltemos à chamada “vaca fria”, isto é, ao assunto de que tratávamos na semana passada: a tradução.
Ia eu dizendo então que o “bom” tradutor há de dominar um pouquinho melhor a língua para a qual traduz (também denominada, tecnicamente, língua de chegada ou língua meta ou língua alvo; em francês langue d’arrivée; em alemão Ziel Sprache; em inglês target language; em espanhol lengua de llegada), e ligeiramente menos bem a língua da qual traduz (também denominada, em termos técnicos, língua partida ou língua fonte; em francês langue de départ; em alemão Ausgang Sprache; em inglês source language; em espanhol lengua de origen). Explica-se: a língua materna aprende-se ao mesmo tempo que se aprende a falar, a andar, a viver; e é uma forma de aprender muito cheia de conotações e ensinamentos paralelos, por assim dizer; já a língua da qual se traduz costuma ser uma língua que se aprendeu mais pelo intelecto que pela emoção – e isto faz uma enorme diferença. Um bom amigo meu costumava dizer que língua materna é aquela em que a pessoa reza e xinga e faz contas. Para rezar e xingar e fazer contas é preciso que se tenha um aprendizado bem antigo, bem inicial, bem fundamental. É na língua materna que o tradutor há de encontrar elementos denotativos e conotativos capazes de expressarem da melhor forma possível as ideias que ele tenha sido capaz de captar em outra língua – esta, sim, talvez aprendida intelectualmente, por um ato de vontade, que é como em geral se aprendem línguas estrangeiras, a não ser que a pessoa viva em permanente contato com uma língua estrangeira, como acontece. Digamos. em zonas de fronteira...
Mas, bom conhecedor, bom “domador” ou dominador, por assim dizer, da própria língua, e razoável conhecedor de uma língua estrangeira, estará o indivíduo quase pronto a ser um “bom” tradutor. Mas é claro que a um bom tradutor são necessárias certas disposições, por assim dizer, especiais. Um bom tradutor está sempre a postos: é só ele bater os olhos em um texto e já lhe dará uma vontade interior quase irresistível de traduzi-lo, de pô-lo ao alcance de pessoas que talvez não conheçam, ou pelo menos não conheçam tão bem, a língua estrangeira em que o tal texto está escrito... O tradutor é, assim, uma espécie de “missionário”; a “missão” do tradutor é esta: tornar acessível, a pessoas que não falam determinada língua estrangeira, o que o autor estrangeiro diz ou está querendo dizer com as palavras dele.
Mas é claro que, paralelamente a esse aspecto “missionário” do tradutor há de existir sempre – e feio e forte como se diz – o aspecto material. Mesmo porque trabalho é trabalho, seja braçal, seja intelectual, e ninguém está aí para trabalhar de graça, ora essa. A profissão de tradutor envolve um esforço e um trabalho como qualquer outra profissão e há de ser remunerada como qualquer outra. Para coibir certos abusos praticados contra eventuais tradutores por usuários de traduções mais ou menos bem intencionados (de “boas intenções”, etc.), existe e funciona no Rio de Janeiro (o telefone é 252.1616, DDD 021) a ABRATES, Associação Brasileira de Tradutores, com endereço no catálogo telefônico e tudo.
Um dos “problemas” trazidos com mais frequência ao conhecimento da ABRATES é o dos “tradutores fantasmas”: tradutores que, como os “escritores fantasmas” (em inglês ghost writers), não assinam seus trabalhos e são apenas parcialmente pagos pelo que fazem. Explicação: um tradutor de “renome”, por esta ou aquela razão, “aceita” encomendas de tradução em volume superior ao que talvez pudesse cumprir dentro dos prazos estabelecidos (toda tradução tem um prazo, e é bom cumprir sempre esses prazos dados); premido pelo tempo, etc., esse tradutor “de renome” passa adiante, ou “subloca”, seu trabalho a alguém de sua confiança que acaba “fazendo o trabalho para ele”, e ao qual ele afinal paga apenas uma parte do que lhe é pago pelo editor. Isso explica a diferença de qualidade entre várias traduções assinadas por um mesmo tradutor, pois diferenças hão de existir entre as várias pessoas por ele “contratadas” ou “subcontratadas” – e não é sempre que o dito tradutor de “renome” tem tempo ou disposição para efetuar uma boa revisão do texto traduzido que vai levar sua assinatura... E “isso” pode acontecer? – perguntarão alguns. Pois “pode” acontecer e efetivamente acontece. Quando conheci a excelente tradutora Vera Mourão, por exemplo, ela trabalhava como “tradutora fantasma” para um renomado tradutor do Rio de Janeiro; não foi sem algum esforço que consegui tirá-la dessa condição e apresentá-la como “tradutora” a alguns editores cariocas, para os quais ela passou a traduzir e assinar – e, naturalmente, receber... Mas talvez seja até um caminho razoável, esse, de alguém entrar no território da tradução como “tradutor fantasma”, levado pela mão exploradora de algum tradutor renomado; talvez seja até um caminho, eu ia dizendo, mas não creio que seja o melhor. O melhor caminho, creio eu, é o do tradutor que procura os editores e presta-se a fazer os testes necessários e fica esperando que chegue sua vez. Se isso “demora”? Às vezes: depende muito da qualidade da tradução feita pelo candidato. Um bom candidato é imediatamente chamado, um candidato de pior qualidade há de ficar mofando na espera. E vale aqui chamar a atenção para a qualidade do trabalho do tradutor, uma qualidade que há de ser sempre uma distinção.
Publicado originalmente no jornal A ORDEM, ano LXII, São José do Calçado, domingo, 5 de fevereiro de 1989, nº 2493.
Esta é uma publicação de cooperação entre o site Tertúlia e a Academia Calçadense de Letras.