Escritores-residentes no Espírito Santo

Pedro J. Nunes

Reinaldo Santos Neves foi o segundo a assumir o papel de escritor-residente no Espírito Santo. Baseou-se em José Carlos Oliveira, o primeiro a tomar esse título por aqui ao estabelecer um projeto em final de 1985, na UFES. A inspiração no projeto de José Carlos Oliveira, com as devidas adaptações, é tão evidente que no termo que Reinaldo Santos Neves assinou com a Secretaria de Estado da Cultura consta:

O presente projeto retoma, em sua essência, o PROJETO ESCRITOR RESIDENTE pioneira e proficuamente executado na UFES, no período de outubro de 1985 a abril de 1986, pelo eminente escritor capixaba JOSÉ CARLOS OLIVEIRA, com a participação das entidades Fundação Ceciliano Abel de Almeida, Rede Gazeta de Comunicações e Hotel Porto do Sol. (1)

Nesses mais ou menos seis meses que teve para realizar seu projeto, José Carlos Oliveira realizou parte de uma oficina literária na Universidade Federal do Espírito Santo – segundo José Irmo Gonring ele não conseguiu concluí-la devido às condições muito precárias de saúde (2) – e publicou um volume de contos sob o título Bravos companheiros e fantasmas.

No dizer de Reinaldo Santos Neves, José Carlos Oliveira apresentou, ele mesmo, esse primeiro projeto de escritor-residente à UFES. Em vídeo publicado pelo site Tertúlia, diz ele:

A ideia do projeto escritor-residente, que foi o primeiro projeto de escritor-residente em terras capixabas, foi o próprio José Carlos que trouxe quando veio para Vitória. Ele fez a proposta à UFES, a A Gazeta e ao Hotel Porto do Sol de patrocinarem esse projeto. (3)

Não se sabe, ao que eu saiba, uma vírgula do que inspirou José Carlos Oliveira nessa ideia pioneira em terras capixabas. De certo mesmo é que havia, segundo seus amigos, e devido às condições extremas de sua saúde, um desejo de retornar à cidade natal e estar entre os seus realizando uma tarefa literária que, entre os seis meses que passou entre nós, realizou em parte.

A ideia de residência literária, que assim chamo à falta de nome melhor, não é nova. Aos sessenta anos, em 1957, William Faulkner foi nomeado escritor residente da Universidade de Virgínia, onde passava parte do ano. O escritor norte-americano J. M. Coetzee escreveu sobre esse fato o seguinte:

Um lugar de escritor-residente no campus tranquilo de uma universidade sulista poderia ter sido a salvação de William Faulkner, proporcionando a renda fixa sem pedir muito em troca e dando-lhe tempo para trabalhar. Desde 1917, um Robert Frost bastante astucioso vinha mostrando como usar a aura de bardo a fim de garantir sinecuras acadêmicas. Todavia, sem ter mesmo um diploma secundário e desconfiado de conversas ‘literárias’ ou ‘intelectuais’ demais, Faulkner não tornou a pôr os pés no mundo acadêmico até 1946, quando foi convencido para uma palestra na Universidade do Mississippi. A experiência não foi tão ruim quanto ele temia; à idade de 60, por um salário mais ou menos nominal, Faulkner entrou para a Universidade da Virgínia como escritor-residente, posto que ocupou até a morte. (4)

A despeito da provocação com que Coetzee se refere a essa atividade, o que se pode deduzir, com base no que se lê no site Albert and Shirley Small Special Collections Library, é que o trabalho de Faulkner como escritor-residente da Universidade de Virgínia foi produtivo. Vejamos:

A escolha de William Faulkner para a guarda dos mais importantes manuscritos e escritos pessoais em sua posse na época de sua morte foi a Universidade de Virgínia. Seu desejo tornou-se possível com a criação da Fundação William Faulkner, a qual ele organizou para legar seus documentos. Eles foram finalmente transferidos para a Universidade sob os cuidados do amigo de Faulkner Linton R. Massey, que doou à Biblioteca da Universidade de Virgínia uma vasta coleção das primeiras edições e traduções da obra de Faulkner, bem como de publicações que se referissem à vida e à obra do autor. A coleção também inclui gravações de áudio das palestras de Faulkner durante o tempo em que foi escritor-residente na Universidade de Virgínia. (5)

Foi nesses últimos anos de sua vida (ele morreria em 1962) que Faulkner, com a tranquilidade que desfrutava com seu posto na Universidade de Virgínia, concluiu a trilogia “Os Snopes”, que havia iniciado em 1940 com a publicação do romance The Hamlet (publicado no Brasil com o título A aldeia), dando prosseguimento, em 1957 e 1959, respectivamente, aos dois últimos volumes, A cidade e A mansão.

Uma iniciativa que chama a atenção nos dias de hoje é a da Ledig House, uma fundação que fica em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Encontrei no site Residência Ilimitada, uma espécie de guia e classificados para residências literárias, a seguinte informação sobre a Ledig House (cujo nome é uma homenagem ao editor alemão Heinrich Maria Ledig-Rowohlt):

Desde sua fundação em 1992, a Ledig House hospedou centenas de autores e tradutores que representam mais de cinquenta países, dando acolhida a escritores já publicados e tradutores de todo tipo de literatura. Intercâmbio internacional, cultural e criativo é a base de sua missão (...) Convidados devem escolher residência que varia de duas semanas a dois meses (...) O dia na casa é reservado para a escrita ou outras atividades silenciosas, enquanto que as noites são mais comunitárias. Um programa de visitas semanais traz convidados do mundo editorial de Nova Iorque. Editores notáveis, agentes e gente do mundo do livro são convidados para compartilhar o jantar e conversar sobre assuntos criativos e práticos (...) (6)

Alguns escritores brasileiros fizeram residência na Ledig House: os gaúchos Marcelo Carneiro da Cunha, em 2000, e Amílcar Bettega Barbosa, em 1999 (este autor é, a propósito, campeão em residências internacionais, passando pelo International Writing Program, da Universidade de Iowa, e Château de Lavigny, em Lavigny, na Suíça, e o paulista Carlos Eduardo de Magalhães, em 2005. Pela Ledig House também passaram os portugueses Tiago Manuel Ribeiro Patrício e José Riço Direitinho.

O escritor mineiro Ivan Ângelo também foi escritor-residente no exterior, acolhido pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles, por um mês, quando teve oportunidade de lecionar literatura brasileira.

Um caso interessante de residência literária é o do autor angolano Sousa Jamba, nascido em 1966. Tendo sido escritor-residente em diversas universidades da Escócia, ele acabou escrevendo e publicando suas primeiras obras em inglês.

Outro caso que merece referência é o do escritor João Ubaldo Ribeiro, que por cerca de 15 meses, entre 1990 e 1991, com toda a família, residiu em Berlim, na Alemanha, a convite do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD). Encontrei no site da revista Veja algo que possa melhor que eu falar sobre isso:

Outra experiência importante de João Ubaldo nessa trajetória de tornar-se conhecido fora do país é sua estadia por pouco mais de um ano na Alemanha, em Berlim, quando ganha uma bolsa da Deutsch Akademischer Austauschdienst (Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico). Lá escreveu crônicas semanais para o jornal Frankfurter Rundschau e produziu Hörspiele (peças de rádio), peças radiofônicas que usufruem de grande popularidade na Alemanha. Com esse trabalho, tornou-se reconhecido e valorizado num país em que a literatura é levada muito a sério e que faz com o que acontece no mundo literário alemão repercutir por todo o globo. A “experiência alemã” culminou com a publicação do livro Ein Brasilianer in Berlin, lançado em 1994 na Alemanha, e, sintomaticamente, apenas um ano depois no Brasil, sob o título de Um Brasileiro em Berlim.” (7)

Desse modo podemos crer que a tarefa de escritor-residente em nossa pequena aldeia, ainda que não possa ter inspirado a nenhum de nós, dá-nos certa extirpe. E digo “dá-nos” porque acabei sendo eu, e o sou desde o início de 2015, o escritor-residente da Biblioteca Pública do Espírito Santo, ou seja, o terceiro escritor-residente capixaba, dando continuidade a essa ideia que entre nós nasceu de José Carlos Oliveira. E que, diferentemente de José Carlos Oliveira e Reinaldo Santos Neves, aceitei a tarefa sem a interposição de nenhum projeto definido ou assinatura aposta em termo de cooperação ou acordo com a biblioteca ou com a SECULT.

Sobre os feitos e fatos das residências desses dois grandes escritores muito já se falou e muito ainda se falará, tamanho o vulto de suas realizações. Quanto a mim, se me permitem um gesto de recolhimento, tudo ainda está em construção. E se me autorizam falar ainda algo, deixo aqui a repetição de texto meu publicado no livro Biblioteca Pública do Espírito Santo: 160 anos de história (dando graças à crença dos antigos de que a repetição é recurso do infinito):

Apesar da reconhecida importância de meus antecessores, aceitei a tarefa, ainda sem atinar muito bem com o que esperavam de mim, após dois dias de relutância, relutância que, a propósito, o meu antecessor Reinaldo Santos Neves ajudou a dissipar, tornando-me assim o terceiro escritor-residente do Espírito Santo.

Antes de entrar na Biblioteca do Monasterio de Wiblingen, na Alemanha, o visitante pode ler a solene inscrição que afirma que ali “são armazenados todos os tesouros do conhecimento e da ciência”, sem dúvida uma citação perfeita para qualquer biblioteca. Para Jacques Bossuet, lembrando o título “tesouro dos remédios da alma” com que os egípcios se referiam as suas bibliotecas, “é nelas que se cura a ignorância, a mais perigosa das enfermidades e a origem de todas as outras”.

Foi com reverência a essas prescrições que adentrei pela primeira vez como escritor-residente a portaria principal da Biblioteca Pública do Espírito Santo. Trazia em mim um grande susto, dessa espécie de susto beneficiado pelo encantamento. Antevia esse monastério sagrado dos grandes silêncios (o silêncio, tenho crido, é um dos tormentos dos tiranos), dos grandes segredos, dos grandes mistérios – todos desvendáveis por aqueles que se dispuserem a compulsar as fontes de conhecimento –, e não ignorei, como nunca pude ignorar com relação ao lugar dos livros, o seu bafejo inquietantemente transformador.

Minha residência na Biblioteca Pública do Espírito Santo é absolutamente espontânea. Não está regida por nenhum ato oficial sacramentado pela pena da burocracia. Não assinei meu ponto de entrada, não assinarei meu ponto de saída. Tenho na consciência um sentido de servir à comunidade de forma unilateral: nada quero em troca. Não recebo qualquer tipo de patrocínio ou subvenção ou vantagem. Minha remuneração é a cortesia dos que lá trabalham e o usufruto do silêncio desse lugar do conhecimento e dos mistérios sondáveis. Fiz e faço o que for possível no que diz respeito à formação de acervo, à análise de doações de livros, à participação na escrita de documentos, releases e artigos relativos aos fatos em torno da Biblioteca Pública. Eventualmente falo à comunidade em mesas redondas, comunicações ou, à falta de nome menos pomposo, palestras, tudo isso sobre temas ligados à atividade de escritor e de leitor. Tenho organizado as exposições da casa com as facilidades proporcionadas pelo rico acervo que possui. Fico até o dia que eu quiser, fico até o dia que quiserem. (8)

Pedro J. Nunes, autor de Menino, Vilarejo e outras histórias e A última noite, entre outros livros, é escritor-residente da Biblioteca Pública do Espírito desde 2015. Depois de um período de afastamento em virtude da pandemia de Covid-19, retornou à BPES em agosto de 2023. Pertence ao Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e à Academia Espírito-santense de Letras.

REFERÊNCIAS

(1) ITEM SEGUNDO do ACORDO QUE ASSINAM ENTRE SI A SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA DO ESPÍRITO SANTO E O PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PARA DESENVOLVIMENTO E EXECUÇÃO DO PROJETO ESCRITOR RESIDENTE DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO ESPÍRITO SANTO (documento arquivado na BPES).

(2) Em http://www.tertuliacapixaba.com.br/paraler/jose_carlos_oliveira_em_cinco_cronicas.html. Consulta em 17/05/2018.

(3) Em http://www.tertuliacapixaba.com.br/videos/video_jose_carlos_oliveira_entre_nos.html. Consulta em 17/05/208.

(4) Em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1007200506.htm Acessado em 10/05/2018. Consulta em 10/05/2018. Obs.: Este texto foi publicado originalmente na "New York Review of Books" sob o título "The Making of William Faulkner". Copyright J.M. Coetzee, 2005.

(5) Tradução livre que fiz do seguinte: William Faulkner’s choice of a repository for the major manuscripts and personal papers in his possession at the time of his death was the University of Virginia. His stated wish was implemented by the creation of the William Faulkner Foundation to which he arranged to bequeath his papers. They were ultimately transferred to the University under the guiding hand of Faulkner’s friend, Linton R. Massey, donor of the University of Virginia Library’s vast collection of Faulkner first editions, translations and all publications touching on the writer’s life and work. The collection also includes audio recordings of Faulkner’s speaking engagements during his time as writer-in-residence at the University of Virginia. Em http://small.library.virginia.edu/collections/featured/the-william-faulkner-collection. Consulta em 10/05/2018.

(6) Tradução livre que fiz do seguinte trecho selecionado: Since its founding in 1992, Ledig House has hosted hundreds of authors and translators, representing more than fifty countries. We welcome published writers and translators of every type of literature. International, cultural and creative exchange is a foundation of our mission (...) Guests may select a residency of one week to two months (...) Daytime is reserved for writing and quiet activities, while evenings are more communal. A program of weekly visits bring guests from the New York publishing com-munity. Noted editors, agents and book scouts are invited to share dinner and conversation on both creative and practical subjects (...) Em http://www.residencyunlimited.org/opportunities/ledig-house-international-writers-residency-usa-deadline-october-20-2011.  Consulta em 10.05.2018.

(7) Em https://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/joao-ubaldo-o-escritor-que-representa-o-brasil-no-exterior. Consulta em 10/05/2018.

(8) Biblioteca Pública do Espírito Santo: 160 anos de história / organização de Rita de Cássia Maia e Silva Costa e Adriana Pereira Campos. Vitória, ES : Arte da Cura, 2016.

Leia outros textos

Voltar