Crônicas da Insólita Fortuna

A expressão crônica comporta dois significados: o de uma narração histórica, feita por ordem cronológica; ou um relato leve e episódico, apresentado em jornal, revista e hoje em dia na internet, para uma leitura ligeira e descompromissada.

A rigor, em nenhum dos dois sentidos são as narrativas deste conjunto de textos denominados Crônicas da insólita fortuna que, em sua forma e composição, estruturam-se na linha de contos, sem deixar, porém, de ser crônicas inspiradas na História e em figuras históricas.

Portanto os textos ora republicados (a 1ª edição é de 1998) têm um pé na conotação histórica das crônicas, mas sem ordem cronológica; e outro pé no relato descompromissado com a chamada verdade histórica, por se tratar apenas de ficção.

Trecho de Crônicas da insólita fortuna

Não registram os catálogos jesuíticos o ano da chegada de Fabiano de Lucena à capitania do Espírito Santo, mas, em 1556, já estava na terra, pregando aos índios. Ali deram-se os seus maiores serviços à catequese dos bárbaros e deu-se também o seu inferno espiritual, que terminou por perdê-lo para a Companhia.  
    
Tinha o padre Lucena uma frase para definir os índios do Brasil e com ela estava dito tudo: são uns contrários. E contrários eram. Contrários uns aos outros porque contrários entre si, de tribo para tribo, destruindo-se em guerras intermináveis; contrários à natureza porque, adeptos da antropofagia, comiam uns aos outros a cada guerra que faziam, devorando o vencedor ao vencido em banquetes regados com o cauim das acidezes, que duravam dias, às vezes meses; contrários à conversão da fé porque, contrariamente aos ensinamentos que lhes ministravam os padres, numa manhã aceitavam, de fronte pendida e face penitente, o que diziam ter aprendido dos padres e no coração guardado e, à tarde, repudiavam a ciência da salvação, recaindo, de cabeça alevantada e semblante irreverente, nos cultos pagãos que haviam abjurado, como se nunca tivesse passado aquela santa sabedoria por suas orelhas; contrários às regras da monogamia eram também, pois que, contrários à humana decência, coabitavam com quantas mulheres podiam ter e haver, sem distinção de laço de sangue ou parentesco, hoje sendo marido, amanhã cunhado sendo, ou irmão e irmã, num só abraço; contrários, finalmente, até na língua em que falavam, tão cheia de palavras guturais e de estranhas silabadas, que mais parecia uma língua falada ao contrário, talhada para eles de encomenda.

 

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