Elogiada pela crítica, estudada por pesquisadores, admirada por contemporâneos e distante do público. A obra do escritor Fernando Tatagiba (1946-1988) carrega o estigma de uma literatura marginalizada e carente do apoio do Estado para sobreviver.
Aos 20 anos da morte de Tatagiba, seus cinco livros publicados entre 1980 e 1994, dois deles póstumos, somem dos sebos à medida que são ressaltadas sua genialidade e relevância para a literatura.
"A obra do Fernando é comentada, relembrada, mas ninguém acha um livro dele hoje", afirma o escritor Pedro J. Nunes, do site Tertúlia (www.tertuliacapixaba.com.br).
De fato, "O sol no céu da boca" (1980), "A invenção da saudade" (1983), "Rua" (1986), "História do inema Capixaba" i(1988) e "Um minuto de barulho e dois poemas de amor" (1994) dificilmente são encontrados em sebos e, quando aparecem, estão supervalorizados, devido à baixa oferta.
"Fernando é vítima de uma estrutura que mata a literatura produzida no Espírito Santo. As pessoas buscam os livros e não têm como achar", analisa Nunes. "Temos um mercado festeiro que adora ir a lançamentos de livros de graça, mas não temos um consumo real", concorda Alessandro Darós, autor do livro de contos "Sqizo ou As Patas do Velho Sátiro".
Os textos de Tatagiba também integraram diversas antologias, revistas literárias e coletâneas de contos infantis e peças de teatro. O legado do autor conta com escritos variados, além de um livro de contos, "Absurdíssimos", todos inéditos.
"A minha prioridade é relançar ‘O sol no céu da boca’. Seria um marco", afirma a poeta Dalva Broedel, viúva do escritor. "Eu acharia justo ter uma sala com a obra dele na Fafi, por exemplo. Ninguém escreve nada pra ficar guardado. Essa é minha grande reivindicação", diz Broedel.
Natural de São José do Calçado, Tatagiba participou ativamente da cena cultural da Capital nos anos 60, para onde se mudou com a família. Chegou a cursar as faculdades de Direito e Letras, mas abandonou ambas em nome da literatura e do jornalismo.
Nesse período, conviveu com escritores e cineastas, entre eles Bernadette Lyra, com quem dividia algumas paixões: Franz Kafka, Donald Bathelme e o cinema. "Ele se dizia personagem de Kafka, ele fazia questão disso. ‘O Sol no Céu da Boca’ é kafkiano", avalia a amiga.
O livro, prefaciado pelo contista João Antônio, inaugurou a Coleção Letras Capixabas, da Fundação Cultural do Espírito Santo, e recebeu críticas positivas nos suplementos literários nacionais.
"De tudo o que ele escreveu, ‘O Sol no Céu da Boca’ é o que há de melhor. Uma mistura muito bacana de referências de gêneros literários com o trabalho do poeta francês Stéphane Mallarmé", analisa Darós. "O posicionamento do texto na página, a extrapolação da margem, até o conteúdo, ele trabalha isso de forma diferenciada".
Tatagiba era um apaixonado pela cidade e tirava dali personagens e inspiração para seus textos. "A gente tinha mania de ficar observando as pessoas nas ruas, sentados na Praça Costa Pereira. Em ‘Rua’ ele fala muito desses personagens que passaram pela cidade", lembra Bernadette Lyra. "Ele transformava o cotidiano, além dos nossos olhos comuns, em uma coisa linda, com um olhar humano", afirma Broedel.
Ao longo dos anos 70 e 80, Tatagiba foi cronista e crítico literário de A GAZETA e do jornal A Tribuna. Cinéfilo, o autor frequentava as salas de rua do Centro de Vitória e foi o primeiro a se preocupar com o registro dos filmes produzidos no Estado. Pouco depois de sua morte, foi lançado "História do Cinema Capixaba", livro em que resgata a história das salas de projeção e dos filmes.
A marginalidade é outra marca de sua obra, exemplificada pelos embates com a academia de letras. "Ele dizia que nós éramos os eleitos, porque não fazíamos a literatura do Convento da Penha. Nós gostávamos de Vitória pelo que ela tinha de estranhamento", afirma Lyra. "A relação dele com a academia não era harmoniosa. Vivia à margem do contexto tradicional literário", diz Broedel.
Apesar de concordarem quanto à relevância da obra de Fernando Tatagiba, as instituições que publicam autores capixabas não devem relançar os livros do escritor. "As pessoas que conhecem o trabalho dele cobram, mas não há projetos", diz Sérgio Blank, da equipe de Coordenação e Formação Artística e Cultural da Secretaria de Estado da Cultura, que já reeditou obras de Haydée Nicolussi, Levy Rocha e José Teixeira de Oliveira. A Academia Espírito-Santense de Letras (AESL), que coordena a coleção de memórias José Costa, entre outras, tem o mesmo discurso. "Não temos nada programado", afirma Francisco Aurélio Ribeiro, presidente da AESL.
As obras de Tatagiba
O sol no céu da boca. Contos. 1980. Editora Fundação Ceciliano Abel de Almeida. Primeiro volume da Coleção Letras Capixabas.
Invenção da saudade. Crônicas. 1983. Edição particular.
Rua. Contos, crônicas e reportagens. 1986. Editora Fundação Ceciliano Abel de Almeida. Volume 23 da Coleção Letras Capixabas.
História do Cinema Capixaba. Memórias e história. 1988. Publicado pela Prefeitura Municipal de Vitória.
Um minuto de barulho e dois poemas de amor. Poesias. 1994. Publicado com apoio da Lei Rubem Braga.
Absurdíssimos. Coletânea de contos fantásticos ainda inédita.
Publicado no Gazeta On-line, em 14 de outubro de 2008.