Comentário crítico à obra de Miguel Marvilla

Joana D’Arc Batista Herkenhoff

O ano era 79 e desde o começo da década estava em moda uma prática poética que se caracterizava pela escolha do poema curto, “flashes instantâneos, registros relâmpagos de mini-experiências, estalos líricos de breve duração e efeito imediato." [i]. Era a época da chamada “geração marginal”, marginal pela produção artesanal em mimeógrafos e xerox, de distribuição ignorada pelo mercado editorial e pela postura de protesto contra os cânones e a tradição.

A poesia de Miguel Marvilla surge nessa época. É à porta dos bares, no olho a olho, que os seus primeiros livros de poemas circulam de mão em mão: De amor à política, edição conjunta com Oscar Gama Filho, de 1979, A fuga e o vento, de 1980 e Exercício do corpo, de 1981, foram mimeografados e trazem na pele o ar daquele tempo pela sua apresentação alternativa. Além da apresentação e do modo de circulação, a poesia de Marvilla tem em comum com essa geração a retomada do lúdico, a exploração do espaço gráfico da página e o humor.

Por outro lado, fazem-se presentes nesses livros escolhas que diferenciam a sua poesia da proposta, ou da falta de proposta estética dessa geração que, muitas vezes, produziu uma poesia que desdenhava do cuidado formal: como esta antologia deixa perceber, nos primeiros poemas, Marvilla já se mostra inteiro, consciente do ofício a que se entregava, a literatura já era latente em sua vida havia muito (leia-se o poema “Gravata”, escrito aos dezesseis anos). Talvez isso se explique pelo fato de que poesia não tem idade e não se deixa aprisionar nas artimanhas do tempo com suas categorias de presente, passado e futuro; talvez a poesia seja mais dada a labirintos...

Abandono, então, a linha do tempo para me entregar ao espaço da escritura de Miguel Marvilla, organizando esse comentário segundo escolhas temáticas e formais do autor, em vez de analisar cronologicamente sua obra. O que este comentário traz não é uma descrição detalhada dessa obra, antes um passeio, com a imprevisibilidade dos passeios que comportam, ora paradas para apreciar detalhes da paisagem, ora uma rápida, nem por isso menos atenta, visada. Que o leitor me acompanhe nesse, para depois fazer o seu próprio caminho por onde é melhor passear os olhos: a própria poesia.

Por apreciar o desprendimento de quem deixa o melhor vinho para o final da festa, começarei falando de política; o amor pode esperar, pois é um prato que não esfria.

 

De política
  

(...) porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela é teatro”.

Roland Barthes

Tema coadjuvante na poesia de Marvilla, a política está presente no seu primeiro livro como marca de um tempo em que se podia rimar amor com política, tempo de otimismo motivado pela abertura política que se anuncia no começo da década de 80. Fosse hoje, tempo de pretensões politicamente corretas, o título talvez fosse “De amor à ética”. Mas era tempo de levantar bandeiras de palavras, de desafiar, denunciar e reivindicar: de reinventar uma possível realidade.

Dentre os poemas que tematizam a política, destaco “SOBRE/RE ALVORADA” (DAP),  poema que fala do papel de homens e mulheres na construção de um país melhor. Isso poderia ser banal, como adverte Barthes na epígrafe, não fosse o suporte poético, não fosse o jogo que o poeta faz com as palavras, especialmente com as preposições indicativas de lugar, denotando uma preocupação de fazer literatura com palavras e não sobre acontecimentos. Esse poema é um dos poucos em que o poeta se vale da poesia mais diretamente como instrumento de crítica social, junto com “Movimento operário 2”, “1964” e “Cartilha” (DAP).

Em “General mata homens” (DAP) depura-se uma compreensão da poesia como uma linguagem que não se deixa usar com outro fim que não seja ela própria (função estética):

 

só sirvo inútil
como esse verso
e essa rima desacostumada  (DAP)

 

Com o tempo, a política se dilui em meio às preocupações existenciais de um sujeito poético pleno, que não mais levanta bandeiras ou veste camisas, a não ser aquelas que lhe servem, que se ajustam à sua necessidade de expansão lírica. Na poesia de Marvilla, o político, o ideológico estão no espaço entre, nas entrelinhas.

 

De humor

 

AMOR
humor

            Oswald de Andrade

Entre o amor e a política do primeiro livro, surge o humor, inspirado possivelmente na seta afiada da ironia de Drummond. Ao largo dessa ironia herdada, o poeta desenvolve uma forma muito própria de humor, diferente também do poema-piada de 22, revisitado pela poesia marginal. Um humor que explora, além do chiste, o humor negro, o trash. Exemplo disso é a linguagem carregada de pesadas metáforas de ”Poema horroroso” (A fuga e o vento): “e os lobisomens amam a lua gorda”, “Um fogão de lenha acende a madrugada-céu/ onde aracnídeos grudam-se em nossas costas”).

O humor é uma pitada de sabor na poesia de Marvilla e pode ser apreciado em outros poemas como “Boris” e “Lobo mau” (A fuga e o vento), “Sébrio” (Exercício do corpo), “Fruto prolibido” (Dédalo), dentre outros que o leitor irá descobrir.

Quando vier a público (E que não tarde!) o seu livro, Zoo-ilógico, poesia para crianças, inclusive as que já cresceram, o leitor poderá se divertir com as brincadeiras poéticas que o autor faz nesse nada convencional zoo, onde “o elefante, sem vergonha, / bate as asas de mansinho, / faz piruetas no ar, / pega minhocas com a tromba / e voa, feliz, pro ninho." [ii] 

 

De leituras

 

ler se lê nos dedos
não nos olhos
que  olhos são mais dados
a  segredos.

Paulo Leminski

 

Harold Bloom, crítico americano autor de A angústia da influência, compreende o poema como um ato de leitura de outros poemas que o precedem. Já vai longe o velho conceito de originalidade. Nesses tempos em que tudo já foi dito, inclusive esta frase, a originalidade do poeta, por mais paradoxal que pareça, está exatamente na sua forma de apropriação de outros discursos. A poesia de Miguel Marvilla é multirreferencial, poesia de quem lê com os dedos, poesia de leitor de sensações, de poetas, dos outros e de si. Essa vertente intertextual está presente em toda a sua produção por meio dos mais variados recursos como citação, alusão, paródia.

A influência primeira do poeta é Carlos Drummond de Andrade, de quem recebeu elogios, considerados por ele a sua mais cara fortuna crítica, na época de lançamento do seu primeiro livro.

Pode-se notar a presença de Drummond, não só nos poemas que fazem alusão direta à sua poesia, mas num certo tom de angústia e perplexidade perante o esforço inútil de resistir, de existir que se percebe em poemas como no já comentado “General mata-homens” e “Suicídio urbano”,ambos do livro De amor à política.

Em dossiê publicado na revista Cult, de número 26, vários poetas falam do fascínio e da influência de Drummond sobre sua poesia. Marvilla, leitor confesso de Drummond, também não poderia escapar a esse fascínio, pois conforme Heitor Ferraz: “Drummond é um lodaçal nele muitos poetas patinam, deslizam, tentando escapar de sua influência. É essa uma luta árdua, já que sua dicção extremamente poderosa captura o “pardal novo” (como Bandeira designava os jovens poetas) e entranha-se na linguagem que começa a ser elaborada.” [iii]

Em A fuga e o vento, o título e a epígrafe são retirados do poema “Instante” [iv], de Drummond e o poema “Canção quase inimiga” é campo de uma guerra viril que se declara ao “poeta forte” de “Canção amiga”:

 

não quero essa canção amiga!”.

quero uma canção inimiga,
 uma declaração de guerra a todo solecismo
– coletividade de um só.

 

No poema “Omissão”, penúltimo desse livro, em vez de lutar contra a influência drummondiana, o poeta exorcisma essa influência por meio da ironia, a começar pelo título, pois em vez de omitir, o que faz o poeta no decorrer do poema é confessar-se e conversar com a sua poesia:

 

“há tanto  teeemmmmmpo não leio Drummond
que não sei do tempo presente
nas minhas mãos
em floração

 

É como se o velho poeta lhe dissesse, quase em tom de desculpas: “A literatura estragou tuas melhores horas de amor.”[v];e o poeta jovem respondesse:

 

Há muito que não sei ler
(perdi os óculos e a memória
em mistérios de amor)
(...)
e não faço mais que amar e ser amado

 

Nesse poema, o poeta supera pela via do humor, a angústia da influência de Drummond e dessa aceitação, nasce a sua voz, sua pele de palavras:

 

Nascimentado

esta pele que me dei
do universo que tinha
a esta pele que me dei
o universo que tenho

 

José Augusto de Carvalho, no prefácio de A fuga e o vento, aponta outros poetas com quem o autor estabelece diálogo intertextual: Neruda, Castro Alves, García Márquez e Augusto dos Anjos.

Essa vertente intertextual está presente também nos outros livros do poeta, em Dédalo (1996), porém, o jogo intertextual chega a um alto grau de refinamento: Marvilla se apodera do estilo de outros poetas, incorporando-o à sua escritura. O poeta Fernando Pessoa é quem inspira esse processo de despersonalização por meio do qual se ouvem múltiplas vozes. Talvez o culpado seja o cupim que: “Mergulha em meu livro de Fernando Pessoa/ até o fundo de mim”.

Essa ação do cupim, que Andréia Delmaschio [vi] lê como a ação do tempo, destrói o “eu poético” e Pessoa, juntos no livro, amalgamados pelo ato de troca que é a leitura. Depois da leitura, de certa forma, texto e leitor têm seu fim, pois nenhum dos dois será mais o mesmo, talvez no lugar reste um outro (mais um?), ou vários outros fundidos num só. A impressão que se tem ao ler os poemas de Dédalo, é de que Marvilla fala com a voz de Pessoa, o que se percebe pela temática do eu cindido, pela seleção vocabular, pelo tom nostálgico e pelas imagens marinhas:

 

A minha alma partida vai por uma
alameda de sombras inclementes.
eu a vejo, por vezes, na penumbra
de um soslaio — eu excessivamente este

que assim sou. Nos baldios de mim s’tando
num granítico silêncio a descoberto
e um comboio de angústias, eu naufrago
nos sargaços de um mar de pensamentos

 

Nas “Quadras, parte I”,tal qual os jazzistas que improvisam sobre um tema básico, o poeta faz inúmeras variações sobre os clássicos temas do fingir e do outrar-se pessoano. O poeta, tal qual o cupim, corrói, desconstrói a retórica pessoana, até esvaziá-la ou enchê-la de novos sentidos:

 

só sinto o que me é dado
sentir. Mas, se por um lado,
o que sinto não é meu,
quem sente, outros ou eu?

escrevo para mentir
de público o que para mim
há muito sinto — e refuto:
de tantos, não sou nenhum.

(...)
eu sou um excesso de outros,
não sendo outros, tampouco.
e deito-me em pensamentos
que nem sempre reconheço.

 

Fernando Pessoa não é o único poeta lido por Marvilla em Dédalo, como o próprio título deixa antever, o discurso mitológico também é revisitado nos poemas “Dédalo”eÍcaro”, além da poesia de Gilberto Mendonça Teles, nas belas imagens aquáticas do poema “Peixamentos”, Drummond, no poema, “A lenta vontade das coisas findas”, Bandeira, em “Pesadelo simplex”, Dante, de quem o poeta busca o nome da musa, Beatriz, presente em “Na luz das duas horas de uma tarde”e “A segunda que chegou foi Fabiana”, de Tanto amar,  e  retomado em “Tudo era por minha causa” de Dédalo.

Ao ler Dédalo,vem-me à mente um poema que me faz pensar se a poesia amadurece tal um fruto:

 

poema na página
mordida de criança
na fruta madura [vii]

 

E esse poema me responde que poesia é casamento do lúdico, mordida de criança, com a técnica, o saber apreciar a fruta madura. Dédalo, no conjunto da obra de Marvilla, seria exatamente esse ponto de maturação da poesia, em que são resgatados os experimentos formais e o humor dos seus primeiros livros, somados a outras conquistas como a habilidade de manejar o poema longo, o soneto, a ousadia de retomar o coloquial, as quadras populares e os mais variados ritmos e métricas. Poder-se-ia dizer que esse é um livro de resgate não só de formas, mas de temas, o poeta retoma a infância, num dos seus mais belos poemas (“Tudo era por minha causa”), a terra natal  (“Quando o último turista”), reflete sobre os seus medos, sobre a doença (“Pesadelo simplex”), fala sobre os filhos (“O flautista” e “Menininha”), fala da própria poesia, além de tematizar o amor, a que dedico um outro espaço, o final.

 

De imagens

 

Chove dentro da alta fantasia.

                                     Dante

Marvilla sempre buscou uma poesia “que fale aos sentidos das pessoas” [viii], daí o seu gosto pela fusão das sensações nas sinestesias:

 

as coisas já são outras. Ouve as casas
brilharem no quintal, com voz de cor. (EC)

 

Entre todos os sentidos, porém, o olhar tem uma importância extremada, o que resulta numa poesia pictórica, plástica, uma poesia fanopaica, termo que Ezra Pound usa para se referir à poesia que é um “lance de imagens sobre a imaginação visual” [ix] [1]. No poema “Arco-íris”, do seu primeiro livro, o poeta exercita a sua lente:

 

 “Hoje
acumulo desistências
e guardo as fantasias policrômicas
para quando o arco-íris chegar

 

As fantasias policrômicas, guardadas nesse verso, se fazem imagens e mostram a habilidade do fotógrafo no poema ‘Miragem”, que encerra De amor à política, mostrando a cidade “em estado de fotografia”, despida pelo olho do poeta: a janela que “despe / paisagens / anacrômicas”.

No poema “O afogado do meu sonho” (AFV), o poeta não se contenta em apenas fotografar e quer ser paisagem, ser o outro, o olhado, mas se queda palhaço, clown de uma cena impossível: a do desejo do outro que não ele próprio.

 

quero que quero ser paisagem
na clara boia da tua retina,
mas habitante
constante
de uma única miragem
permaneço, inconfundível,
palhaço.

 

Em “Querência”, de Exercício do corpo, as imagens é que vestem o desejo do poeta: desejo de ter o olhar da criança que vê tudo como eterna novidade e nos mostra o mundo depurado pela sua lógica poética, expresso na imagem da primeira estrofe, (...) como a lua brotada de algum galho da paisagem; desejo de romper com os referenciais da razão e ser “suavemente louco/ (...) / como quem soma cores / a flores de cristal” e, finalmente, o querer ser “simples e honesto / como uma retina / um desejo”, o querer poetizar a existência, ideia contida na referência dupla  a Bandeira (“Desencanto”) e Drummond (“Os desiludidos do amor”) nos dois últimos versos: ou feito quem desfecha tiros de desencanto no peito. Está completa a trindade do desejo do poeta: ser criança, louco e poeta, que já é.

Dentre todas as paisagens, há uma que encanta especialmente o poeta: o corpo da mulher amada, que comparece em toda a sua exuberância com seus “sulcos, vias, trilhas” (“O homem da mulher que eu amo” TA, com os “olhos combinando com a camisa” (“Teus olhos combinando com a camisa” D). Ora posando, insinuante, Lolita: “Puxa a perna / esconde a pele. / Repete o ritual de célula / que não mostra, mas sugere. (“Sônia, fotografia aos 15 anos” LL) ora ativa, com “ânsia / de tarântula / que doce e gentil, / enreda / a presa.” (“Armadilha” LL).

Na poesia de Marvilla, palavra e mulher se fundem, ambas, objetos do desejo do poeta. O poema “Noturno 4” (EC), de linha meta-erótica, tematiza a conquista da palavra, “batalha e prêmio” , meio, fime princípio da poesia:

 

é nesta noite que te procuro
e onde te criarei palavra

(...)
é nesta noite que, em te sabendo,
me lambuzarei do teu riso
e não te quererei mais que silêncio
entre dois olhares furtivos.

é nessa noite de obstáculos como convém a uma noite,
que te lutarei e serás batalha e prêmio.

 

Com as palavras, o poeta tem uma relação amorosa: há algumas que sempre voltam, a quem ele devota fidelidade: derme, sumarento, seio, mulher, poesia, paixão, palavra, lua, labirinto. No começo, o poeta desalinhava os cabelos das palavras, experimentando-a em todas as suas possibilidades, decompondo e juntando sílabas para daí extrair o máximo de significado, com o tempo veio o amor pela palavra inteira, pela frase inteira, “Pelos quatro andares de um soneto.” ( “Eu te amaria” D).

Da mulher, o que o poeta diz querer é “matéria pra poesia” (“A segunda que chegou foi Fabiana” TA),  de tal modo que chega a escrever em tom de confissão: e a amei. (Mas da primeira vez confesso, / com nada de romance ou fanatismo: foi só pra não perder um alexandrino – TA).  

 

De prosa

 

Tantos andam agora preocupados em definir o conto que não seibem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade.

Mário de Andrade

Antes da separação entre o lírico e o épico, aedo era o nome que se dava àquele que cantava seus versos ao som da lira e narrava, com sua música e palavra, uma história. Aedo. Talvez sejaestauma boa palavra para se referir ao poeta que canta seus contos em Os mortos estão no living. Seus contos são híbridos, tentaculares, camaleônicos, amorfos. Matéria primeira de poesia de onde emergem icebergs narrativos: personagens, vozes, espaços, tempos e: poesia, a mais pura poesia.

Um clima onírico, pálido de lua, perpassa todo o livro. Clima de convalescença ou de estado fronteiriço entre vida e morte, onde tudo ganha intensidade e explode em epifanias: “Trago ainda no corpo as marcas doloridas de não ter desistido eu” (“O vampiro, Deborah); “Nova pausa e a verdade, límpida traçando arabescos pelas paredes.” ( Amor); “arremessando-se a ambos até outro instante não usado.”(“Amor”).

O enredo — diluído, fragmentado — parece pretexto para dramatizar (glamourizar até) o fim: “(...) desde a morte de uma esperanceta social até à morte de vontades filosóficas de equilíbrio; mitos (Narciso, vampiros), instituições (cristandade, cidadania), estereótipos (normalidade, sensatez), natureza (frutos, fetos), afetividade (amor, bondade) (...)”, escreve Paulo Sodré em posfácio a esses contos.

Nos trinta contos, que compõem esse livro, separados em duas partes, a primeira intitulada “Os mortos” e a segunda, “Os outros”, o poeta explora o espaço gráfico da página: em “Fragmento”, o leitor precisa acurar a vista para catar estilhaços de sentidos que se espalham pela página; explora as possibilidades sonoras da palavra: “No ônibus, a mulher dormia, linda, ilhada, alheia às cercanias” (“O domínio”), “(...) pendurou-se pelo rabo numa viga do teto e cantarolou um acalanto, evasivo.” (“A ninfas camaleônicas”); cria sinestesias: “Um toca-discos manchava o ar com uma valsa de Strauss.” (“Júlia D.: O banho”), além de outros tantos recursos da lírica e até do gênero dramático: no conto “Os sobreviventes da história” há indicações cênicas, como iluminação e apresentação das falas dos personagens sem a mediação de um narrador.

Tédio, náusea, desejo, odores, lampejos são palavras que me ocorrem quando leio esses contos em que o poeta se ocupa de expressar estados fluidos, alquímicos, nostálgicos, pulsantes, mostrando-nos que a narrativa pode dar-nos não só o fato certo, mas a dúvida; não apenas relações entre seres, mas o particular, a mais funda intimidade: o lírico.

 

De amor

 

palavras são corpos que se tocam
corpos são palavras que se querem

                                       Aglaê Pontes

O amor, na opinião de Stendhal, é o único tema; na poesia de Marvilla, a espinha dorsal que ele dedilha com habilidade desde o primeiro livro do qual destaco dois poemas curtos, mas exatos para disparar o calibre do gozo:

 

ORGASMO

pisei firme
o chão
amoleceu
voei(...)

 

O segundo poema de amor, “Constância, Constância”, de inspiração concretista, desenha na página a silhueta de um seio, “fetiche aliterante”[x] do poeta. O pensamento, a cada verso, vai ganhando forma nas letras e desinências até chegar à forma imperativa: pensa e se concretiza na primeira pessoa do futuro do presente: pensarei em ganhar um objeto: você; objeto que se dilui até restar apenas a conjunção e seguida da interrogação. Como se o poeta deixasse no ar perguntas como: e depois? E em quem mais?

A partir de Lição de labirinto, o amor se estabelece definitivamente como tema predileto do poeta. Na primeira parte desse livro, “Modo da mulher presente”, a maioria dos poemas versa sobre o tema, trazendo à cena a figura feminina, seus corpos, seus nomes, roubados de sua condição “real” e mergulhados nesse labirinto que é a poesia.

No poema, “Teu corpo”, do livro acima citado, o corpo feminino é linguagem, “(...) é uma lei, uma regra não escrita, / um bocado de pele sobre uma armação de ossos, / sem etimologia”. Segundo o poeta, esse corpo “(...) não tem comparativos / nem no dicionário de sinônimos”), mas o teve nas metáforas com que o poeta o recriou, em palavras.

Essa opção pelo tema amoroso torna Marvilla um poeta diferente nesses tempos em que, segundo Roland Barthes, o discurso amoroso é uma “extrema solidão”, pois “Este discurso talvez seja falado por milhares de pessoas (quem sabe?), mas não é sustentado por ninguém: foi completamente abandonado pelas linguagens circunvizinhas: ou ignorado, depreciado, ironizado por elas, excluído não somente do poder, mas de seus mecanismos (ciências, conhecimento, artes). Quando um discurso é dessa maneira levado por sua própria força, à deriva do inatural, só lhe resta ser o lugar por mais exíguo que seja de uma afirmação.” [xi]

A poesia de Marvilla se mostra esse espaço de afirmação de tão desprestigiado quanto urgente tema: o amor. E o poeta vai buscar, na tradição, a forma do soneto e do decassílabo para trazer de volta este que é o tema original da lírica. Isso, no entanto, não torna a sua poesia passadista, pois o soneto, aparentemente uma forma arbitrária, é modificado pela sutileza do poeta que, fragmenta um verso, inverte a fórmula tradicional dois quartetos e dois tercetos e lhe dá um sabor extemporâneo.

Os poemas de amor de Marvilla não são derrames sentimentais puramente. Mesmo que não tivesse ouvido do poeta a afirmação de que nunca escreve sob o influxo da paixão ou de qualquer outro sentimento para não se descuidar da forma, isso poderia ser percebido facilmente na leitura dos seus poemas. Salta aos olhos o cuidado apurado com a forma, a busca da adequação vocabular para dar conformação poética a esse sentimento, torná-lo jogo, corpo de palavras que carrega em si o calor da emoção dosado à técnica.

Em Tanto amar, como já se comentou, o amor é o único tema dos seus catorze poemas (tantos quantos os versos dessa forma clássica). Catorze também são os nomes de mulher que constelam as páginas desse livro em tom pêssego, impresso em papel vergê, em bonita edição de bolso, tamanho exato para morar nestas minúsculas bolsas tão em moda.

Deny Gomes, em resenha no jornal A Tribuna, lê essa sucessão de nomes como “(...) portos acolhedores, onde, como Millôr Fernandes, na epígrafe do livro, o poeta detém, momentaneamente, a sua errância, o tempo suficiente para viver a experiência amorosa e partir em busca de outras amadas e outros poemas” [xii]. No entanto, a pluralidade do texto poético admite outras leituras, uma leitura possível seria a de que todos esses nomes poderiam ser resumidos em um só: Beatriz, a musa, “tomada em referência, feita índice” (“A luz das duas horas de uma tarde” TA). Mas o poeta não quer ser decifrado, ele não fecha portas e desdenha a minha leitura com o hilário poema “Fruto prolibido”, de Dédalo,onde ressurge leve e provocativo o seu humor (tal qual a raposa da fábula, num discurso que beira ao charlatanismo, o poeta desdenha o fruto que a ele se nega):

 

se era de não comer,
porque estava esta mulher
ao alcance de obter?

Não. Era para ser comida,
porque era vida e não morte
– o resto é mentira.

(Mas, se não fora alimento,
prazer e gosto, ou razão
de haver uma Criação,
mesmo assim valia o risco
derrubá-la de seu galho
e mudar de paraíso.)

 

Esse poema consegue a proeza de conjugar amor com humor as duas palavras do mais curto poema de Oswald de Andrade de cuja falta José Paulo Paes se ressente no poema “Duas elegias bibliográficas” [xiii] dedicado a Oswald.

Em Soneto da despaixão, no entanto, o amor rima é com dor. Aqui tenho um problema, pois chego ao fim desse comentário e prometi ao leitor que serviria melhor vinho no final. Como então terminar comentando esse livro em que o poeta trilha a via crucis da perda, da despaixão? Como falar da sua estrutura de ritual, de despacho, onde treze são os poemas que tematizam a perda? Como comentar a habilidade de sonetista de Marvilla, que, segundo Adilson Villaça em comentário na capa do livro, nem a dor entortou?

Em vez de fazê-lo, então, recomendo ao leitor: só abra esse livro quando de repente o riso se fizer pranto, e, mesmo assim, comece a lê-lo de trás pra frente (como os livros japoneses), pelo décimo quarto soneto intitulado “Ressurreição”, para lembrar que Eros se sobrepõe a Tanatos: que para se viver de verdade é preciso acreditar que paixão é fogo que arde sem se ver e que sempre é possível a Fênix ressurgir das suas cinzas para mais um amor ou para o mesmo amor e:

 

de que este abril (o mais cruel dos meses?)
não passa de delícia amanhecendo
enquanto de mim mesmo vou nascendo

 

Paro por aqui, pois “o destino do comentário não é outro que o de apagar-se perante a própria obra" [xiv], pois a cada palavra que tardo, roubo ao leitor uma surpresa e adio o seu encontro com o objeto desse livro: a poesia...

 

Referências e notas

[i] LEMINSKI, Paulo. Anseios crípticos. Curitiba: Criar, 1986. p. 41.

[ii] MARVILLA, Miguel. Zoo-ilógico. Poesia para crianças, inclusive as que já cresceram (inédito).

[iii] FERRAZ, Heitor. Presença de Drummond. Cult. n. 26, set., 1999. p. 61.

[iv] ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética.  24. ed. Rio de janeiro: Record, 1990. p.171.  

[v] Ibid. p. 117.  

[vi] DELMASCHIO, Andréia. Dédalo: uma leitura. (trabalho inédito)

[vii] LEMINSKI, Paulo. Caprichos e Relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 65.

[viii] MATTEDI, José Carlos. “Labirintos de um poeta.” A Gazeta. 28/11/96.

[ix] POUND, Ezra. Abc da literatura. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1970. p. 9.

[x]SODRÉ, Paulo Roberto. Cartas aos mortos. Os mortos estão no living. p. 111.

[xi]BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortência dos Santos. 13. ed. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1994.

[xii] GOMES, Deny. Um oásis num tempo de desesperança. A Gazeta. 07/11/91.

[xiii] PAES, José Paulo. Melhores poemas. Sel. Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Global, 1988. p. 169.

[xiv] ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 13.

 

Livros de Miguel Marvilla (Citados no comentário por meio da sigla indicada):

* MARVILLA, Miguel. De amor à política, 1979. (edição mimeógrafo) (DAP)

*  __________. A fuga e o vento, 1980. (edição mimeógrafo) (AFV)

*  __________. Exercício do corpo, 1981. (edição mimeógrafo) (EC)

*  __________. Os mortos estão no living. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida. Universidade Federal do Espírito Santo, 1988.

* __________. Lição de labirinto. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida. Universidade Federal do Espírito Santo, 1989. (LL)

* __________. Tanto amar.Vitória: Florecultura, 1991. (TA)

* __________. Sonetos da despaixão. Vitória: Florecultura, 1996. (SD)

* __________. Dédalo. Vitória: Florecultura, 1996. (D)

 

Referências bibliográficas

ANDRADE, Carlos Drummond de.  Antologia poética. 24. ed. Rio de janeiro: Record, 1990.

ANDRADE, Mário de. Contos novos. . 15. ed. Belo Horizonte: Vila rica, 1993.

ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortência dos Santos. 13. ed. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1994.

_________. Aula. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1996.

CALVINO, ITALO. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FERRAZ, Heitor. Presença de Drummond. Cult. São Paulo, n. 26. set., 1999.

GOMES, Deny. Um oásis num tempo de desesperança. A Gazeta. 07/11/91. p.

KRISTEVA, Julia. Histórias de amor. Trad. Leda Tenório da Motta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

LEMINSKI, Paulo. Anseios crípticos. Curitiba: Criar, 1986. p. 41.

_________ Caprichos e Relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983,  p. 65.

MARINHO, Jorge Miguel. Te dou a lua amanhã...: biofantasia de Mário de Andrade. São Paulo: FTD, 1993.

MATTEDI, José Carlos. “Labirintos de um poeta.” A Gazeta. 28/11/96. 

MORICONI, Ítalo. Demarcando terrenos, alinhavando notas: para uma.  In: Travessia. n. 24Poesia brasileira contemporânea. Florianópolis: UFSC, 1992.p. 17-33.

PAES, José Paulo. Melhores poemas. Sel. Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Global, 1988. p. 169.

POUND, Ezra. Abc da literatura. 3. ed. São Paulo : Cultrix, 1970. p. 9.

RIBEIRO, Francisco Aurélio. A modernidade das letras capixabas. Vitória: UFES-SPDC/FCAA, 1993.

ROUGEMONT, Denis de. O amor e o ocidente.2.ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.

 

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