A Rua da Barreira 

Um dia a casa cai.

Seu nome completo é Rua da Barreira da Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte. Mas popularmente é chamada Rua da Barreira, embora o mais indicado fosse Rua do Paredão, devido ao muro de pedras que escora o outeiro no qual a igreja foi erguida.

Quando o paredão estava sendo construído, um velho da boca torta profetizava o seu desabamento. “Não ficará pedra sobre pedra,” gritava num exagero profético que, felizmente, não se fez realidade, levando o velho a morrer com a língua queimada e o vaticínio pregado na boca maraçapeba.

Pela Rua da Barreira se vai do Largo da Misericórdia à Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, subindo-se uma escadaria de trinta e três degraus escavados na terra pelos irmãos da confraria da Boa Morte e da Ressurreição. É à confraria que cabem a guarda e a conservação da igreja, na qual a imagem de Nossa Senhora da Boa Morte, envolta num manto azul-pavão com apliques de estrelas-do-mar, repousa no altar-mor.

Durante décadas a irmandade cumpriu o seu papel sem qualquer problema. Surpreendentemente, porém, por questiúnculas que não iam além de questiúnculas, mas que ganharam foro de grande controvérsia, os irmãos desirmanaram-se em duas facções, a da Boa Morte e a da Ressurreição.

A dissidência tornou-se tão aguda que os partidários de cada facção chegavam a disputar aos empurrões a preferência para entrar na igreja, nas missas dos domingos. Para pôr fim à disputa uma bula episcopal determinou a abertura de duas portas ao lado da entrada principal, destinadas, separadamente, à passagem dos adeptos da Boa Morte e da Ressurreição.

Mesmo assim uma nova divergência obrigou o bispo a definir, sem perda de tempo, a porta que se destinava a cada uma das hostes rivais, dentre as que foram criadas pela bula episcopal.

A rixa, apesar de logo resolvida, tornou-se de domínio público e deu fama à Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, atraindo turistas simplesmente para entrar por uma porta e sair pela outra.

No Largo da Misericórdia, por onde geralmente os visitantes passam a caminho da igreja, não falta quem maldosamente os aconselhe a caminhar renteando o muro de pedras da Rua da Barreira, na esperança de que a nefanda profecia do velho da boca torta possa se cumprir um dia.

Mas há os que procedem de forma mais condenável ainda: quando perguntados pelos visitantes onde fica a Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte respondem, com a irreverência brilhando nos olhos:                                              

Onde?

No cu do conde

Sabeis adonde?

 

O Beco da Ressurreição 

Vivendo e aprendendo.

O Beco da Ressurreição, que vai do Largo da Misericórdia até a Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, é rico de tradições religiosas. Ali se realizam as Procissões de Nossa Senhora da Boa Morte quando a padroeira deixa a igreja num ataúde de vidro para uma rápida circulada a céu noturno.

Primeiro, o ataúde é conduzido a um altar de madeira armado ao lado da igreja onde, ao som das mesmas matracas usadas na Procissão das Transferências, Nossa Senhora ressuscita nos braços de alguns fiéis. Mas ao contrário da Procissão das Transferências, em que os participantes se vestem de negro, na de Nossa Senhora da Boa Morte tanto os devotos quanto os espectadores usam buréis brancos que os amortalham inteiramente.

A encenação da ressurreição é impressionante. Alguns fiéis, escolhidos por sua boa conduta religiosa durante o ano, retiram a imagem de Nossa Senhora do seu ataúde e a erguem lentamente, no altar iluminado a archotes. À medida que a santa é ressuscitada intensifica-se o pinicar das matracas e o povo explode em vivas.

Abre-se a seguir um corredor no meio da multidão para a passagem, até o Largo da Misericórdia, do andor de Nossa Senhora. Em dado momento, um devoto vibra uma sineta com campânulas de ouro e pergunta, a voz alta e rouca: Oi que santa é aquela, que vai na charola? Ao que o povo responde em coro: É Nossa Senhora, é Nossa Senhora!

A indagação e a resposta se repetem várias vezes sob o soar das sinetas e das matracas enquanto o andor, com a imagem da santa, atinge o Largo da Misericórdia para dali retornar ao altar de onde saiu, à luz dos archotes.

Tem lugar então a parte dramática da encenação: a morte de Nossa Senhora sob o cântico das excelências, puxado pelas carpideiras envoltas em mantos roxos, tendo por contraponto o traquetraquejar esticado das matracas.

Quando a imagem é levada para dentro da igreja, a multidão se retira num cortejo espectral, iluminado pelas chamas bamboleantes das tochas.  

Aos visitantes de Cidadillha é comum oferecerem óculos de papelão com lentes de celofane para terem uma visão tridimensional e fantástica do espetáculo. Ai, porém, dos que usarem os óculos! Durante noites seguidas terão seu sono perturbado por pesadelos terríveis, povoados de fantasmas que bailam freneticamente sob o estralejar das matracas.  

 

A Rua São Francisco

Não adianta chorar o leite derramado.

Pela Rua São Francisco chega-se ao convento do mesmo nome, no morro de São Francisco. O convento está aos pedaços, não pelas fustigações das ventanias, nele constantes, mas devido às reformas inacabadas que um frade italiano resolveu fazer por sua conta e arquitetura, deixando-as como ficaram.

Do primitivo convento, de paredes largas e sombrias, não sobrou quase nada, mas, ainda assim, ou por isso mesmo, as sobras e sombras tornaram-se atração para turistas e místicos que vêm a Cidadilha para conhecê-las.

O acesso às ruínas se faz com parcimônia. É necessário cumprirem-se algumas formalidades que restringem o número de visitantes ao estritamente admitido pelos poucos frades que ainda se arrastam entre as paredes do convento, como fantasmas em sua cave.

A escolha dos visitantes obedece a fórmulas de sorteio que se transmitem como herança sagrada entre os religiosos. Diante dos interessados, que se aglomeram na base do convento (os habitantes de Cidadilha não têm o menor interesse pelas visitas), um frade escaravelho de batina sórdida sobe numa pedra e nela equilibrando-se com dificuldade corre salteadamente o dedo por cima da multidão proferindo palavras cabalísticas:                                                

Une, dune, trê,

Salame minguê,

um sorvete colorê,

o escolhido foi você! 

Mas para que se cumpra o ritual da escolha é necessário que o sorteado responda com outra fórmula mais cabalística ainda, previamente distribuída para ser memorizada e cantada pelos que desejam fazer a visita:  

Bambarê, barê de lê,

Ta tarabim, tarabim tetê.

Tic tac, bambarola,

Este dentro, este fora.

Como são poucos os visitantes que conseguem repetir sem erro a cantilena incongruente, raros são os que logram o acesso às ruínas do convento, antes que o frade velhusco escorregue da laje em que se equilibrava com dificuldade.

Mas uma vez consumada a indicação, daí em diante o escolhido fica entregue à própria sorte. Sua jornada pelas ruínas do convento não tem guia nem roteiro e o desamparado visitante acaba indo parar na torre sineira atraído pelo velho sino ali pendente e pelo uivo do vento que ali resfolega loucamente. E, à medida que o visitante sobe o campanário, o uivo se faz mais vulpino e desvairado. Somente meses depois o infeliz se dará conta de que está perdendo a audição, afetada por um zumbido crescente que parece repetir, em compassos alongados: bambarê, barê de lê, ta tarabim, tarabim tetê...

 

A Ladeira das Patas Brancas 

Mais vale um pássaro na mão do que dois voando.

A ladeira é uma das muitas que leva à parte alta de Cidadilha. Seu nome vem das patas brancas que residem nos sobradinhos locais.

Diz a lenda que a sétima filha donzela de um casal que não tem filho vira pata branca na cidade-ilha e é obrigada a morar na ladeira que lhe é destinada.

O porquê dessa obrigatoriedade nunca foi explicado. Mas talvez venha do fato de se querer concentrar, num mesmo logradouro, as infelizes condenadas à transmutação em patas.

A mudança se dá à meia-noite das sextas-feiras de lua cheia. Mas a transformação jamais foi testemunhada por quem quer que seja, apesar da multidão de curiosos, formada sobretudo de visitantes de Cidadilha que se concentram na Rua das Patas Brancas para assistir ao fenômeno. O máximo, porém, que uns poucos privilegiados conseguiram ver, a se dar crédito no que dizem, foi uma ou outra pata branca voando pesadamente sobre o Cais das Colunetas ou sobre as águas sórdidas da baía da cidade, nas noites enluaradas. O que não constitui prova provada de que as patas, flagradas nesses voos solitários, sejam necessariamente as donzelas convertidas em aves.   

A lenda das patas brancas só não deixou de ser levada a sério porque uma das convertidas confessou ser vítima das metamorfoses. Mas quando lhe perguntaram se a mudança era dolorosa e lenta, ou rápida e prazerosa, limitou-se a responder: “Ai de mim, ai de mim, quando me enxergo já estou ‘avoando’ no meio da noite.” E quando lhe perguntaram se a conversão se dava dentro de casa, ou fora dela, saiu-se com esta evasiva caprichosa: “O que é de dentro se faz por fora, o que é de fora se faz por dentro.” E quando, finalmente, insistiram em saber se a transformação ocorria somente à meia-noite ou em outra hora recôndita das sextas-feiras de lua branca, a resposta foi outra tirada impenetrável:  

À hora que é hora, acorda o francês;

se dá pela hora, não sabe do mês.

Vários sábios chamados para esclarecer essas respostas chegaram a conclusões tão disparatadas que apenas demonstraram que não pescavam patavina do que tentavam elucidar. O que contribuiu para se deixarem de lado as especulações sobre o caso das patas brancas.

E, já que elas não incomodam ninguém, Cidadilha se dá por satisfeita em contar, nas sextas-feiras de lua cheia, com patas brancas que saem de suas tocas em voos noturnos e inofensivos para flanar até onde as possam levar as asas da lenda. O quanto bastou para que muitos restaurantes criassem um prato que se tornou típico de Cidadilha – pato ao molho cab´chaba – feito e servido em panelas de barro, com um pouco de urucum e sem azeite de dendê. 

 

A Rua do Fogo 

Caiu, do chão não passa!

A Rua do Fogo é a única ladeira de Cidadilha que tem nome de rua. Calçada com pedras escorregadias, é também conhecida como Ladeira do Quebra-Bunda. Assim, ora a rua é rua, ora é ladeira, conforme o nome com que é tratada.

A denominação da ladeira se explica por si mesma: escorregou, caiu, quebrou a gabiroba. Por esta razão uma penca de moleques fica à espreita dos que se estatelam na ladeira para fustigá-los com uma cantiguinha humilhante: 

Quebra, quebra, gabiroba,

eu quero ver quebrar,

quebra lá, que eu quebro cá,

eu quero ver quebrar.

A denominação Rua do Fogo tem outra razão de ser. A palavra fogo com que foi batizada vem dos acendedores de lampiões que ali morreram queimados pelas chamas do óleo de mamona das luminárias que acenderam. 

A função de acendedor de lampião passa, em Cidadilha, de avô para neto, dentro de uma única família de miseráveis. Por se tratar de função honorífica, os membros da estirpe ficam cada vez mais pobres, de uma geração a outra. Pudera. O custo de vida tem aumentado historicamente em Cidadilha com a sufocante cobrança de impostos, o que provoca o empobrecimento da população e, naturalmente, o da apagada grei dos acendedores de lampiões. 

Mas a bem da verdade nunca se soube de um acendedor de lampião que morresse de fome (ou que mijasse na cama). A tradição é a de que todos eles, de avô a neto, morram invariavelmente queimados pelas chamas do óleo do ofício que lhes ensopa as vestes em virtude do perdigotejar dos lampiões que acendem.

Morrem assim os acendedores de lampiões de Cidadilha na Rua do Fogo. Morrem condignamente cremados no nobre mister de iluminar os logradouros da cidade, para que esta brilhe sempre com a graça e elegância de um presépio.    

 

O Porto dos Padres 

Nada como um dia depois do outro.

O Porto dos Padres era o único porto de Cidadilha porque tudo o mais que na cidade servia de ancoradouro chamava-se cais.

No entanto, o Porto dos Padres, sem tirar nem pôr, não passava de um cais como outro qualquer; sem tirar nem pôr, terminava numa prancha de madeira batida pelas águas do mar; sem tirar nem pôr, gorgolejava o arroto das águas quando as marolas explodiam sob o seu passadio; sem tirar nem pôr, porto não era, pois que de porto não tinha o porte – e nem sequer o porte de cais do porto.

Por que então merecia o gabola tratamento de porto e não de cais? Simplesmente por ser privativo dos padres de Jesus e porque os padres de Jesus mereciam do povo de Cidadilha, desde quando Cidadilha ainda era uma vila, a maior consideração possível.

Neste ponto, duas observações entram de proa: a primeira é a de que embora o porto fosse restrito aos padres, eles facultavam seu uso a outras pessoas desde que elas repetissem sete vezes sem errar a frase o peito do padre é preto, o que mostra que os religiosos de Jesus tinham certa dose de humor; a segunda observação é a de que nem sempre o porto esteve sob o controle dos padres.

Houve um tempo em que os de Jesus foram expulsos de Cidadilha e de sua história. Foi então que o porto passou a abrigar prostíbulos onde mulheres desairosas jogavam o jogo-das-pernas-para-o-ar a qualquer hora do dia ou da noite.

Quando o porto foi devolvido aos seus primitivos donos, estes abriram mão de recebê-lo, temerosos de que nem a poder de muita oração conseguiriam acabar com a má fama que o ancoradouro contraíra como reduto do pecado. Só não puderam evitar que o nome dos padres ficasse ligado à zona do meretrício porque todas as vezes que os homens iam às mulheres desairosas diziam ironicamente que iam ao porto dos padres. E não era para repetir sem tropeço a frase o peito do padre é preto...     

 

A Ladeira da Várzea 

Casa de ferreiro, espeto de pau.

A ladeira, empinada e tortuosa, nasce numa várzea onde se acumulam as águas das chuvas e termina em frente à matriz de Cidadilha. Na ladeira moram pessoas humildes, além de ferreiros com lojinhas na parte dianteira de suas casas.

Há sempre um movimento muito grande nessas lojas porque os ferreiros, independentemente dos encargos da profissão, atendem também aos que os procuram para o engessamento de ossos quebrados (em Cidadilha a medicina está engatinhando). 

À primeira vista, pode não ser fácil reconhecer as casas dos ferreiros. Esta observação parece absurda levando-se em conta que todas as casas da ladeira têm cores diferentes. Mas, por uma razão desconhecida, uma espécie de daltonismo obnubila a vista dos que passam pela ladeira, dando-lhes a impressão de que as casas ali existentes têm a mesma cor ferruginosa. Resta aos transeuntes identificar as casas dos ferreiros pelos espetos de pau pendurados na porta de entrada.

A Ladeira da Várzea oferece risco aos que por ela sobem ou descem, causado pelos rolinetes – carrinhos de madeira com rodinhas de ferro – em que a garotada escorrega pela rampa abaixo. A todo instante esses azougues chocam-se contra as pernas dos que andam na ladeira, com o arrojo de tanques de guerra.

Os visitantes de Cidadilha são as vítimas constantes dos atropelamentos, sujeitando-se, de acréscimo, a uma zombaria cantada pelos pilotos dos rolinetes:                                     

Samba-lelê está doente,

Está com a cabeça quebrada,

O que ela precisa

É de uma boa lambada.

O consolo que os acidentados têm, quando conseguem se levantar do chão, é buscar socorro nas lojas dos ferreiros, onde são tratados com uma oração miraculosa, para a pronta recuperação das partes partidas: 

Eu te coso,

Carne quebrada,

Osso moído,

Nervo desconjuntado.

Só assim recuperam-se rápida e definitivamente e, de lambujem, saem das casas dos ferreiros com uma figa pendurada no pescoço para evitar novas quedas. Uma figa de pau, bem entendido.   

 

O Largo dos Pelames 

Cada cabeça, uma sentença.

No Largo dos Pelames – antigo charco aterrado – localiza-se o matadouro de Cidadilha. É onde se abatem os bois para alimento da população.

O largo é insalubre, com ossadas jogadas sobre a terra e carcaças expostas em varais para secar ao sol. Moscardos com ronronar de besouros voejam por todos os cantos. Rigorosamente uma nojeira, o largo!

Como em Cidadilha não existem currais, o gado é trazido em canoas até o Cais das Colunetas, onde desembarca a poder de picadas de aguilhões, entre mugidos terríveis. E já aí começa a festança popular que termina em sangue derramado no Largo dos Pelames.

Mas antes da sangria desatada verifica-se a encenação do auto do boi, que celebra alegremente a morte simbólica do animal e o corte fictício de suas partes para partilha entre o povo, com versinhos divertidos.  

A encenação tem forte apelo popular e provoca a ida de uma multidão de pessoas ao Largo dos Pelames para assistir à farsa e saborear (é bem o termo) a matança dos animais, considerado o ponto culminante do espetáculo.

Nem todas as pessoas, porém, veem com a mesma simpatia o auto do boi, por mais que os seus admiradores enalteçam as suas origens, que dizem recuar ao culto do deus Ápis e da vaca Isis, no antigo Egito. Um desses críticos mordazes não usou de meias palavras ao expressar sua aversão à festa: “A um sujeito enfiado debaixo de um vestido estampado, que cobre uma armação de madeira com a caveira do bicho, é que chamam boi; a um capadócio metido numa outra armação coberta de pano, que pinoteia às malucas com orelhas de asno e arremete seguidamente contra a multidão à sua volta, chamam burrinha; a outro pascácio, também escondido sob compridas vestes femininas, que se bamboleia à toa como se fosse um espantalho gigantesco, denominam fantasma ou, pior ainda, pantasma, o que é motivo de riso geral quando gritam seu nome; a um quarto apatetado, que finge estar perdido na farsa, chamam pai João, e à sua mulher, que nada fica a dever à patetice do marido, mãe Maria. O divertimento, que parece não ter fim porque a todo instante o boi morre e ressuscita aos pinotes em virtude das aplicações de clister que lhe são feitas no forumbundó, transcorre ao som de violas e pandeiros que, quanto mais tocam, sem que seus tocadores deem um sorriso sequer, mais assanham a súcia dos trêfegos bailarinos e seus divertidos espectadores, quase fazendo desejar que, em vez dos bois verdadeiros que vão morrer daí a instantes para alimento do povo, fossem trespassados pelos aguilhões da morte os bailarinos divertidos e os trêfegos espectadores, sem exceção de um só.”

Nem estas palavras ferinas foram, porém, capazes de empalidecer o prestígio da festa do boi no Largo dos Pelames. Pelo contrário: elas contri-buíram para que mais visitantes viessem presenciá-la como trêfegos admiradores do culto do boi Ápis ou da vaca Ísis.

Tomados de entusiasmo pelo que veem, em pouco tempo os visitantes se põem a desafiar as marradas bovinas, gritando em coro com os habitantes de Cidadilha: “Este boi é manso, não pega ninguém.” 

 

A Rua do Reguinho 

O melhor bocado não é para quem o faz,  mas para quem o come.

A rua é cortada longitudinalmente pelo reguinho que lhe dá nome e a divide em duas partes: uma, de terra batida; outra, de terra solada. Na primeira, ficam as casas dos pescadores pobres, que só têm redes, anzóis e puçás para pescar; na segunda, as casas dos pescadores menos pobres, donos de canoas de pesca.

Todos vivem lado a lado como se não existisse entre eles o reguinho da pobreza que os separa. 

Foi graças aos filhos dos pescadores que a rua ficou célebre. As águas do reguinho descem perenemente do Morro da Fonte Grande, cujo nome explica sua denominação, para a baía de Cidadilha. Mas no outono alcançam seu ponto ideal de serenidade.

É quando os filhos dos pescadores aproveitam para fazer barquinhos de papel que botam para flutuar no reguinho. A brincadeira contagiou os adultos. Em pouco tempo, junto com os barquinhos de papel, barcos de madeira montados por artesãos de cabelos enrodilhados passaram a navegar o reguinho, enfeitados com bandeirolas coloridas. O costume virou tradição, e a tradição associou-se a São Pedro, padroeiro dos pescadores.

Desde então, no dia de São Pedro, as águas do reguinho se tornam palco de uma procissão de barcos em miniatura, com bandeiras e gravuras do santo que, sob o pipocar de fogos, rendem homenagem ao protetor dos pescadores, navegando em fila para o mar.

A festa não se limita à procissão naval. Ela vara a noite graças às muitas barraquinhas armadas ao longo da rua onde são vendidas guloseimas e o quentão que inflama a verve e a cabeça dos que o tomam, a ponto de derrubá-los pelo chão de terra solada ou de terra batida.

Quanto aos filhos dos pescadores, que singela-mente iniciaram a tradição, continuam soltando seus barquinhos de papel nas águas do reguinho. E, já que a festa se tornou uma oportunidade para muitos adultos ganharem uns trocadinhos extras, os filhos dos pescadores não ficaram para trás: passaram a vender mensagens de amor escritas em papeluchos levados pelos barquinhos até os seus destinatários.

As mensagens contêm quadrinhas cuja interpretação corre por conta de quem as lê, o que lhes confere maior encantamento:                   

Você de lá e eu de cá,

No meio passa um riacho,

Você de lá manda um beijo,

Eu de cá mando um abraço. 

Como o interesse do público, principalmente das mulheres, tem sido muito grande pela novidade, pode ser que a procissão oficial de São Pedro incorpore também ao seu ritual a venda das mensagens de amor, o que obrigará os filhos dos pescadores a encontrar outras saídas para não ficar a ver barquinhos nas águas do Reguinho.

 

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© 2007 Luiz Guilherme Santos Neve

 

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