Avenida República: diário na madrugada, da escritora capixaba Lacy Ribeiro, é um dos mais significativos livros da literatura produzida no Espírito Santo, tornando-se um clássico logo após seu lançamento, em 1987. Reunindo 53 contos ligeiros, é resultado do sensível contato da autora com os pobres viventes das madrugadas de uma das avenidas mais antigas da cidade.
Os textos nesta matéria são a orelha do livro, escrita por Fernando Tatagiba, e o prefácio, escrito por Amylton de Almeida.
A Avenida República,
antiga Rua da Vala,
continua vala, república a fora.
Permanece, nas madrugadas,
de carnaval a carnaval,
com seus sujos em bloco
a destilarem o sonho
das cinzas não só das
quartas-feiras, mas das
segundas, terças, quintas, sextas...
O fio da lâmina que separa
a noite do dia
é o espaço mágico que junta
esperança e ilusão de homem
e cidade conviverem
em harmonia.
Lacy Ribeiro, Avenida República
Lacy Ribeiro trabalha como secretária numa multinacional que tem sua sede fora da cidade de Vitória, no Espírito Santo, onde ela reside, no centro da cidade. Para ir ao trabalho, ela acorda de madrugada. E o que poderia ser uma rotina – esperar o ônibus que conduz os funcionários – de repente se transforma, através de sua aguçada e ferida sensibilidade, num livro com um único cenário: a Avenida República, no bairro Parque Moscoso, um espaço geográfico que, nos anos 50, abrigou a burguesia e seu cenário de mentira, e, hoje, com o crescimento da cidade e sua transferência político-ideológica para bairros afastados, expõe o que sempre se esconde por trás da arquitetura de fechada do fascismo caboclo: a indigência, a miséria, a solidão e o espanto de centenas de pessoas que fazem a noite, a madrugada e o início do dia.
Poderia ser um tema fácil, como foi para cronistas que preferem a superfície. Mas Lacy Ribeiro que, em sua estreia na ficção (CONTOS DE RÉIS), focalizou o terror promovido nos anos 70, tem um projeto maior: a redescoberta das pessoas por trás de toda essa miséria e de toda a ideologia de domínio que as cerca. Porque o cenário de Lacy é o cenário do sonho: para essa legião de espantados que ela focaliza neste livro, a Avenida República encerra uma série de mistérios. Nos anos 20, na mesma região, concentrava-se a boêmia da cidade. E, hoje, mesmo com a desfiguração, a mudança da alta classe média, a gradativa ocupação do comércio e da indústria, a Avenida República aceita, numa ramificação, prostíbulos miseráveis, antigos hotéis com interior escondendo um passado que só suas paredes registram, um cinema popular, um parque cheio de árvores, mas fechado, o eterno ponto de táxi (alguém poderia ser socorrido durante a noite? prostitutas sairiam com seus gringos?), e mistérios insondáveis: nas pracinhas, há milênios, todos os excluídos, de uma forma ou de outra, se reúnem, à espera da palavra? À espera do profeta? À espera da resposta? Repito: uma legião de espantados. Se há um único cenário, há também uma única cena: o artista no ponto de ônibus, observando, captando o fim de uma ideologia de aparato e o mistério do ser humano expulso – aquele ser humano da porta dos fundos, o que não tem uma voz, o que não tem porta-voz, o que depende unicamente do fazer artístico para existir. Apresentando uma galeria de personagens tais como são e, apesar disso, expondo suas verdades para além de si mesmos, Lacy Ribeiro cria uma imagem poética que é uma expressão para os outros seres humanos desta cidade.
Nunca com facilidade, pois Lacy dispensa o óbvio, catando, escolhendo a recompondo a imagem através de sua sensibilidade em pequenos textos, que nascem completos e definitivos. Lacy não quer só o aparente e o factual. Lacy persegue o mais escondido, o abandonado, o posto de parte, o inútil; para além do realismo, da demagogia, do constrangedor. Nem que, para isso, ela permaneça – sempre é quarta-feira de cinzas no cenário deste livro – cheia de confetes e serpentinas.
Lacy não está no ponto de ônibus com as mãos cheias de peixe e de pão. São imagens o que este livro contém. Mas ainda assim – a palavra certa é maná.
Lacy Ribeiro – que ora publica este terrível “Avenida República” – surpreendeu todos.
Surgiu, há alguns anos, com um livro de poesia intitulado “Primeiro Passo”.
Depois, no entanto, ao invés de tornar-se mais uma “poetisa capixaba”, lançou “Contos de Réis”, uma prosa dura e madura.
Ninguém supunha que sob a poetisa havia uma notável contista.
Em “Avenida República” esta artista da palavra não fica na superfície: mergulha fundo no dia a dia da metrópole, mostrando uma outra avenida, aquela que não é vista pelos olhos da burguesia.
É a passarela dos marginais, homossexuais, prostitutas, pedintes, empregadas domésticas, desempregados, meninos perdidos, desamparados...
Produzida por nossa brutal e desumana sociedade, temos que engoli-la, queiramos ou não.
Ela, como escritora, enfia por nossa garganta uma fria, áspera e final realidade.
“Avenida República” é a verdadeira Literatura, sepultando de vez o beletrismo dos acadêmicos, os que vivem enlaçados na ilusão.
Trata-se de um livro-paixão pela cidade de Vitória, um pulo profundo na ferida exposta que ninguém quer ver nem aceitar.
Vitória resume-se na Vila Rubim, Parque Moscoso, Praça Oito e Praça Costa Pereira.
Lacy focaliza um dos corações da cidade: a Avenida República, no Parque Moscoso, com seus seres anônimos da madrugada, que as pessoas comuns nunca encontram.
Lacy laça e enlaça este povo, colocando-o em livro.
Antes não era de bom tom nem mencioná-los...
A nossa literatura está se transformando. Se atualizando. E isto graças a Lacy Ribeiro, que passa – os olhos lúcidos – na alvorada para ir trabalhar, recolhendo as sobras dos sonhos. Junto, certamente, vêm alguns pesadelos.
Assim, juntando os retalhos dos talhos dos outros, construiu esta obra de fôlego, que muitos desejariam escrever. Até eu.
Deixemos a burguesia, os beletristas, com sua literatura de salão, de casa colonial, de varanda aveludada.
Mergulhemos de vez na esquina.
Aí estão as escadarias, os bares, becos, a baía de Vitória.
O boteco, a praça, a avenida.
O submundo do prostíbulo e da ponte.
Aí estão os ônibus superlotados, a carona inesperada de madrugada.
A aventura de viver.
Aí está Lacy fazendo uma literatura-vida, viva, dura e madura.
Com o ruído das ruas.